O peso do futebol num país esquizofrénico
O SC Braga foi impedido de fazer um teste com público. Prova de que o futebol (a Liga, pelo menos) trabalha mal nos lobbies e de que nos preocupamos acima de tudo com o que pensam de nós lá fora.
Já não é a primeira vez que ouço falar do regresso às aulas como fator impeditivo do aligeirar das limitações colocadas ao desporto pela Direção Geral de Saúde. Tinha acontecido, ainda que a um nível não-oficial, quando aqui manifestei discordância relativamente às condições que a mesma DGS estava a colocar para o regresso do desporto de formação. “Deixa ver como corre o regresso às aulas e, se correr bem, vais ver que depois aligeiram”, disseram-me, otimistas, alguns responsáveis. Agora, que a DGS recusou o plano apresentado pelo SC Braga para fazer um teste-piloto num jogo particular com 30 por cento da lotação, já se alarga a duração do plano de contingência. Já não é só o regresso às aulas, mas também o Outono e depois o Inverno. É o Portugal dos lobbies no seu melhor – e a constatação de que o futebol (e o desporto em geral) têm muito a aprender para trabalharem neste plano.
Não tenho, naturalmente, condições para apreciar o plano apresentado pelo SC Braga para fazer o tal jogo-teste com público na ocasião em que vai receber o Real Valladolid, em desafio de preparação. Sei que só para poder ir ao Dragão comentar o Portugal-Croácia de sábado pela RTP tive de empinar um plano de 50 páginas. Mas também não tenho condições para julgar os planos certamente similares e igualmente minuciosos que terão sido apresentados antes da realização de touradas com público, antes da autorização para a celebração da Festa do Avante ou antes da permissão dada para que o GP de Portugal em Fórmula 1 venha a ter gente nas bancadas. Sim, sei que a malta do futebol é mais entusiasta do que os aficionados dos touros, que quem vai ver concertos ou comícios ou até que quem assiste a desportos motorizados, mas isso não tem impedido a realização de testes um pouco por todo o lado na Europa.
Em França, onde já se joga o campeonato, todos os jogos podem ter até um máximo de cinco mil espectadores – e de acordo com o L’Équipe a Liga vai pedir uma indemnização de 100 milhões de euros ao estado por se entender discriminada em relação a outras modalidades e eventos. Em Inglaterra já se fez um jogo-teste, num Brighton-Chelsea, que teve 2500 pessoas devidamente separadas nas bancadas, não constando que tenha corrido mal. E até aceitaria que me dissessem que com o mal dos outros estamos nós bem e que se eles querem criar novos canais de transmissão do vírus é lá com eles – que nós por cá continuamos seguros do nosso caminho. Mas então não entendo a festa de estado que foi a atribuição da Final-8 da Liga dos Campeões a Lisboa ou a passividade da mesma PSP que anda a dispersar “ajuntamentos de jovens” um pouco por todo o país perante a concentração louca de adeptos do Paris Saint-Germain em frente ao Hotel Myriad sempre que a equipa entrava ou saía para o estádio.
O que a rejeição do teste que o SC Braga queria fazer me diz é que continuamos todos muito preocupados com o que pensam de nós – o que costuma ser mau sinal. Não se impede a concentração de adeptos – muitos deles sem máscara, que vi eu – à porta do hotel de uma equipa estrangeira, porque isso ia “dar uma má imagem do país”. Da mesma forma que se celebra nas mais altas instâncias a Final-8 da Liga dos Campeões em Lisboa porque isso “dá uma boa imagem do país”. Ou que se permite 50 por cento da lotação na Fórmula 1 porque se não se autorizar o circo se calhar não volta e o regresso da Fórmula 1 é importante para “dar uma boa imagem do país.” E isto, francamente, não me parece uma forma racional de decidir questões de saúde pública.
O público nos estádios é importante e creio que só não avança porque não há quem queira saber disso “lá fora” ou porque a Liga, que é quem mais se bate por ele, conta zero em termos de peso político. Lembram-se da reunião com o poder político antes da retoma do futebol, para a qual foram convidados os três grandes e a FPF, tendo depois a Liga surgido como presença de última hora, só porque iria parecer mal que não estivesse? Pois é a isso mesmo que me refiro. Ainda assim, incomensuravelmente mais importante é a retoma do desporto de formação, porque não se pode condenar à inatividade toda uma geração de jovens cujo sedentarismo acabaremos por pagar de outras formas, até mesmo em termos de orçamento de estado e de futuros gastos com a saúde.
Estamos à espera de quê? Do regresso às aulas, do outono e do inverno? Ninguém se lembrou da primavera e do aumento da polinização? E estamos a ver se vai correr bem? Pois tenho uma novidade para vos dar: não vai correr bem! Porque estamos a aumentar as cadeias de transmissão e será normalíssimo que aumente também o total de infetados com Covid19, com gripe ou com qualquer outra doença própria da época. Mas deixem-se ficar porque ainda tenho outra novidade para vos dar acerca do que vai correr mal: a médio e longo prazo vamos ter mais acidentes cardiovasculares. Os acidentes cardiovasculares são a principal causa de morte em Portugal, acima até do cancro, e têm como principais fatores de risco o tabaco (que se vende livremente), a obesidade (potenciada pelas “drogas” cheias de açúcar que se vendem em todo o lado, até para bebés) e o sedentarismo (que a prática de desporto combate). E nem isso impede a DGS de travar o acesso dos jovens ao desporto de formação. Vá lá alguém entender isto.