O paradoxo do quarto grande
A implantação como quarto grande não traz só coisas boas nem se ganha por decreto. O SC Braga vai no bom caminho, mas essa é a guerra do segundo centenário.
O SC Braga celebra o centenário com uma pujança única na história. Não é por ter marcado lugar na final da Taça da Liga de amanhã, que afinal a prova continua a ser o parente pobre do nosso espetro competitivo e o presidente António Salvador até já conduziu a equipa a mais cinco finais, uma da Liga Europa e duas de cada uma das Taças nacionais. É mais porque a presença na decisão de Leiria confirma a consolidação do futebol de um clube que Salvador assumiu vai para 17 anos e transformou no quarto grande da atualidade. Mesmo que nem o próprio nem ninguém tenha encontrado ainda resposta para “o paradoxo do quarto grande”, uma contradição à vista em Portugal desde que o Belenenses deixou de ter resultados a condizer, ainda Salvador era miúdo de escola. E o paradoxo é este: o SC Braga é um grande porque obtém resultados; estes devem-se em parte também ao facto de não ter pressão; mas ao mesmo tempo toda a gente no clube reclama a visibilidade que é dada aos outros. Mesmo sabendo que isso fará crescer a pressão e que, consequentemente, dificultará a obtenção de resultados.
Sei que há aqui ideias passíveis de contestação. Logo à partida a denominação de quarto grande – já estou a ver belenenses e boavisteiros insatisfeitos, porque os clubes deles até foram campeões nacionais, porque os axadrezados até têm mais presenças na Liga dos Campeões (três) do que o SC Braga (duas), porque os azuis têm mais internacionais. Depois, a ideia de que a visibilidade traz pressão e que isso dificulta a obtenção de resultados – aqui já serão os braguistas a contestar, pois se nunca lhes foi dada essa visibilidade não terão tido ainda a oportunidade de fracassar na sua gestão. Ambas me parecem, no entanto, incontestáveis.
Nos 17 anos de Salvador, ninguém como o SC Braga fez sombra aos grandes. O presidente chegou ao clube em Fevereiro de 2003 e acabou esse campeonato em 14º lugar. No anterior, o de 2002, o clube tinha sido 10º. Andava-se longe da segunda metade dos anos 70 e do início dos anos 80, quando o SC Braga foi – com Boavista e Vitória SC – um dos clubes a aproveitar o fenómeno de “belenensização”, que levou os azuis de Lisboa a cair na II Divisão, para passar a ser, primeiro, quarto, e depois até terceiro, sempre que o Sporting vacilava. De 2004/05 para cá, no entanto, só por uma vez o SC Braga falhou a presença nas competições europeias: foi em 2014/15, na sequência do nono lugar na Liga anterior. Isto é: nos anos de Salvador, o SC Braga tem menos uma presença europeia do que o Sporting e menos duas do que FC Porto e Benfica. E não é só isso: tem nesse período tantas finais europeias como o Sporting (os leões em 2005, os minhotos em 2011) e menos uma do que o FC Porto ou o Benfica – sendo que os dragões foram os únicos a trazer as taças para casa.
O SC Braga, portanto, está lá em cima com os outros três. Mereceria, assim sendo, que lhe fosse dada a mesma visibilidade, como ainda há umas semanas o atual treinador, Carlos Carvalhal, “exigiu”. Ou conforme Salvador recorda constantemente. Acontece que, se há anos me bato por uma das exigências do presidente braguista e dos seus colgas do G15 – a centralização dos direitos televisivos e a distribuição mais igualitária da receita como forma de fazer crescer a competitividade – sei por experiência própria que a visibilidade não se ganha por decreto. Que os programadores televisivos ou os diretores dos jornais, aos quais são exigidos resultados, não se regem por argumentos a não ser os do sucesso dos produtos que criam. Há muita coisa que seria justa mas acaba ultrapassada pela competitividade: exigir aos canais televisivos, por exemplo, que coloquem o SC Braga em pé de igualdade com clubes que ainda têm muito mais implantação no público nacional em nome da justiça competitiva que é incontestável seria um pouco como exigir ao treinador do SC Braga que, na elaboração da equipa, coloque um jogador de cada uma das freguesias do concelho, porque todas deviam ter os mesmos direitos de representatividade. Em suma: a justiça na distribuição de receita devia ser um direito inalienável; a igualdade de representação mediática já depende de outros fatores, como a representatividade do clube no país.
E, digo eu, ainda bem para o SC Braga que nem tudo o que se passa no plantel é sujeito ao mesmo nível de escrutínio mediático dos outros grandes. Porque há uma coisa que ninguém contesta: Salvador tem tido sempre dedo para escolher os treinadores. Aliás, tem sido tão bom a escolhê-los como depois é impulsivo a despedi-los. Nestes anos de Salvador, por Braga passaram quase todos os treinadores notáveis do futebol nacional no século XXI: de Jorge Jesus a Jesualdo Ferreira, de Leonardo Jardim a Paulo Fonseca, de Domingos Paciência a Carlos Carvalhal, de José Peseiro a Rúben Amorim, de Sérgio Conceição a Abel Ferreira… Em muitos casos, foi o SC Braga que os projetou para depois eles virem a assumir desafios mais exigentes: à exceção de Abel Ferreira, que está agora no Palmeiras, todos passaram também por outro grande do futebol português.
Depreende-se, portanto, que apesar de ter estado sempre tão bem servido de treinadores, não é por isso que em Braga se tira rendimento extraordinário de jogadores que não convencem nos seus clubes de origem. Esgaio saiu do Sporting como moeda de troca; os irmãos Horta (André e Ricardo) nunca serviram para o Benfica, que os dispensou; Iuri Medeiros fez parte de plantéis do Sporting mas sempre para depois acumular empréstimos; Castro não se impôs no FC Porto e teve de fazer vida da Turquia; Galeno fez só quatro jogos pelos dragões, que foram quem o trouxe do Brasil. E, com menos pressão e menos escrutínio, todos juntos são a base de uma equipa que joga excelente futebol e se bate com qualquer dos outros grandes: em 2020, por exemplo, o SC Braga ganhou sete dos oito jogos que fez contra FC Porto, Benfica e Sporting; em 2021 vai com uma vitória e uma derrota.
Não quer isto dizer que o SC Braga não deva bater-se pelo mesmo nível e atenção dos outros grandes. Deve fazê-lo. A final de amanhã, aliás, deve ser vista como um passo num caminho de implantação nacional que depende de muitas mais como esta. Mas, correndo as coisas bem, esse caminho vai ser a guerra para o segundo centenário.