O paradoxo das seleções
Portugal saiu da jornada tripla com sete pontos e pouca qualidade de jogo coletivo. Mas Santos teve de usar 21 jogadores (19 titulares) em seis dias. Se querem afiar as facas, esperem pelo Europeu.
A seleção nacional correu o risco de sofrer um embaraço histórico, ontem, no Luxemburgo. Não tanto pelo golo do adversário, marcado ainda a meio da primeira parte por um emigrante português, Gerson Rodrigues, que nesse momento até foi patriota, uma vez que foi a sua ação que acordou a equipa. Mas muito mais pela forma apática como entrou em campo contra um adversário que até já sabe jogar (acabara de ganhar fora à Rep. Irlanda) e pela dificuldade em ligar o jogo que continuou a demonstrar durante todos os 90 minutos, ainda que a partir de certa altura mascarada pelo aumento da intensidade e pela maior qualidade individual dos seus executantes. Fernando Santos ainda conseguiu interferir com o primeiro problema – ou isso ou os jogadores tiveram vergonha na cara – mas nem a vitória final (3-1) deve impedir-nos de constatar o segundo, que é muito fruto da nova realidade competitiva e do paradoxo que está a ser imposto às seleções nacionais: jogam, mas não treinam. E jogam com intervalos tão pequenos entre partidas que nem podem aproveitar rotinas coletivas de outros períodos de competição.
Portugal saiu deste triplo compromisso com os mínimos olímpicos: sete pontos, a equivaler a duas vitórias sobre dois adversários mais frágeis e um empate fora de casa com o rival direto na luta pela qualificação. Tivesse o árbitro visto o golo de Ronaldo em Belgrado e podíamos estar a celebrar os nove pontos que praticamente nos deixariam desde já no Qatar. Assim sendo, teremos de continuar o percurso sem faltas até à receção aos sérvios, que encerra esta fase, em Novembro. Entre seleções que defrontaram, nesta tripla jornada, adversários na luta pela qualificação, só a Alemanha (se ganhar hoje à Macedónia do Norte), a Inglaterra (se vencer hoje a Polónia) e a Dinamarca (se hoje se impuser à Áustria) podem chegar ao fim desta jornada com nove pontos. A França empatou em casa com a Ucrânia, a Espanha fez o mesmo na receção à Grécia (e só ganhou à Geórgia nos descontos), a Holanda perdeu na Turquia, a Bélgica empatou na Rep. Checa, a Croácia perdeu na Eslovénia… É nesta altura que costumam surgir os chavões a dizer que já não há equipas fáceis, mas nem isso é verdade: a Dinamarca enfiou oito golos na Moldávia, a Bélgica fez o mesmo à Bielorrússia e a Holanda aviou Gibraltar com sete.
Esses resultados são as exceções, não só porque a maior parte dos mais fracos estão a crescer ou porque muitas vezes os mais poderosos encaram esses jogos com uma leveza excessiva, mas sobretudo porque as equipas mais fortes não têm a segurança competitiva de um clube, que pode treinar e preparar os seus jogos. E se isso já era verdade antes, agora é muito mais premente, com a pandemia a obrigar à concentração de jogos em jornadas triplas marcadas para seis dias, com mais dois de treino antes da primeira partida. A questão física leva os treinadores a rodar muito, destruindo a pouca rotina coletiva que possa existir. E a falta de tempo para treinar impede-os de trabalhar essas rotinas, o que não serve de desculpa mas pode atenuar um pouco a irritação que nasce da observação do jogo desligado da seleção nacional neste triplo compromisso. Não se notou tanto no jogo com o Azerbaijão, que nem quis jogar e nos deu três quartos do campo. Não se notou tanto – a não ser defensivamente, na segunda parte – no jogo com a Sérvia, que estava taticamente impreparada para defrontar os talentos atacantes portugueses. Mas notou-se mais contra um Luxemburgo rigoroso e mais bem preparado para meter o dedo na ferida.
Nestes três jogos, Fernando Santos usou 21 jogadores – todos os convocados, à exceção dos dois guarda-redes suplentes. Dos 21, 19 foram pelo menos uma vez titulares. O que jogou menos – Palhinha – ainda fez 24 minutos, saindo do banco nas três partidas e acabando por ver a entrada no Luxemburgo premiada com um golo. De todos, só cinco foram titulares nas três ocasiões: Anthony Lopes, Cancelo, Rúben Dias, Bernardo Silva e Ronaldo. E só três deles (o guarda-redes, o defesa-central e o capitão) fizeram os 270 minutos de competição. Claro que vai continuar a haver quem ache que o talento desta seleção está a ser desperdiçado por um treinador que não dá lugar aos novos, que joga “muito à defesa” – quando se houve um problema evidente no Luxemburgo foi o do excesso de atacantes e de falta de quem ligasse o jogo a meio-campo – ou que “não percebe nada disto”. A verdade é que perceber, todos percebemos alguma coisa. Todos temos a nossa própria visão acerca da melhor forma para a equipa jogar. A questão é que só um tem a missão de operacionalizar as coisas e, com estes calendários, isso não fica fácil. Se querem afiar as facas e apontar ao selecionador, esperem pelo Europeu. Aí, sim, a equipa terá de mostrar trabalho. Sem desculpas nem atenuantes.