O maior mercado de sempre
O FC Porto pode estar na iminência de fazer “o maior mercado de sempre”. Da promessa, sai a convicção de que o André Villas-Boas presidente não se lembra de como pensava o André Villas-Boas treinador.

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André Villas-Boas disse, na apresentação oficial de Francesco Farioli como novo treinador do clube, que “poderemos estar perante o maior mercado de sempre da história do FC Porto” e, independentemente das razões que possam assistir-lhe, em torno da situação depauperada em que encontrou as contas da SAD, muitas vezes acho que é uma pena que o André Villas-Boas presidente não se lembre com mais frequência do que certamente pensaria o André Villas-Boas treinador. A declaração do líder supremo dos Dragões tem um efeito imediato no entendimento de quem prefere encarar estas coisas do futebol sem se esforçar com tarefas de reflexão. É um empurrar de responsabilidades para o outro lado, uma maneira de dizer que se no final o troféu de campeão não estiver do lado de cá não foi por responsabilidade nossa, dos que trocámos o fato-de-treino pelo fato completo com gravata. Mas há na promessa do “maior mercado de sempre” um racional que, a mim, me provoca inquietação. Provavelmente defeito meu, que sou um determinista incorrigível.
Não é preciso irmos tão atrás a ponto de ver o que aconteceu às “unhas do leão” de Jorge Gonçalves, na década de 80, ou onde descambou a “super-equipa” construída pelo Benfica no início da década de 90. O Mundo está hoje muito diferente, a globalização veio facilitar o conhecimento de realidades diversas, as SAD trouxeram uma responsabilização financeira que inviabiliza a maior parte dos excessos que já se sabe que não podem pagar-se. Mas recuemos ao “maior mercado de sempre” do FC Porto, o mercado do Verão de 2019, que nem foi assim há tanto tempo. Sérgio Conceição tinha ganho a Liga de 2018 com muito refugo, com o “fair-play financeiro” da UEFA a impor que se recuperassem sobretudo jogadores emprestados, e depois perdera a de 2019 para uma grande segunda metade de campeonato do Benfica de Bruno Lage. Nesse Verão, a SAD portista investiu como nunca: foram, ao todo, 63 milhões de euros, um valor que, por exemplo, em Portugal, só o Benfica atingiu (por três vezes). E é certo que a equipa portista voltou a ganhar o campeonato em 2020, o que poderia ser entendido como uma espécie de validação do investimento, mas não o fez à conta daquilo que lhe trouxe o mercado. Neste Verão, o FC Porto torrou, por exemplo, 12 milhões de euros em Nakajima, 10,7 milhões em Zé Luís, 7,5 milhões em Loum (que já lá estava há meio ano, por empréstimo) e 5,5 milhões em Saravia.
Também houve acertos, como é evidente, que foi igualmente nesse Verão que apareceram Uribe, Luís Díaz e Marchesin ou que regressou Marcano, mas o que é importante aqui relevar é que mais de metade do investimento que o FC Porto fez no seu “maior mercado de sempre” foi diretamente para o cesto dos papéis. Zé Luís foi 17 vezes titular durante essa época (11 delas na Liga), Nakajima ficou-se pelas 12 (cinco na Liga), Loum pelas nove (quatro na Liga) e Saravia pelas seis (zero na Liga). Os quatro começaram 14 por cento dos jogos em que podiam ter jogado de início nesse campeonato. Daí igualmente que, dos quatro, só Zé Luís tenha vindo depois a garantir algum retorno financeiro, quando saiu por 5,5 milhões de euros para o Lokomotiv Moscovo, um ano depois. O facto de se investir mais não garante minimamente que se vá investir de forma avisada, como se percebeu já, de resto, no arranque de mercado que o FC Porto está a fazer. A contribuir para um bolo global que Villas-Boas admite possa vir a superar os 63 milhões de euros gastos em 2019 já lá estão os 13,3 milhões que vai custar o defesa-central Neuhén Pérez e os 15 milhões de Gabri Veiga, ambos contratados antes de o FC Porto acertar a demissão de Martín Anselmi e apostar na sua substituição por Francesco Farioli. São treinadores quase gémeos, que pensam de uma forma muito semelhante? É bem possível que sim. Mas se acerca do médio espanhol há poucas dúvidas de que possa encaixar bem nas ideias do novo treinador – até por ter sido contratado com aprovação do anterior –, o que dizer do defesa central argentino? Poderá ele protagonizar aquela saída de bola baixa, na linha de fundo, a atrair a pressão para encontrar linhas de passe atrás da primeira linha do adversário, como gosta o italiano? Dificilmente. Até porque não só foi contratado ainda com o beneplácito de Vítor Bruno, não o atual nem sequer o último mas o penúltimo treinador do FC Porto, a anteceder o corte epistemológico de Janeiro, como até Anselmi já abdicara dele na reta final da sua liderança.
Mais do que no “maior mercado de sempre”, uma recuperação do FC Porto na hierarquia do futebol nacional – acerca da qual os dois terceiros lugares consecutivos e os três anos sem um campeonato ganho deixam poucas dúvidas – terá de assentar em golpes cirúrgicos, como os dados em Prpic e Borja Sainz podem vir a revelar-se, e no crescimento dos valores que saírem das equipas de formação. O último título do FC Porto, o de 2022, teve a marca de Diogo Costa, Vitinha, João Mário, Fábio Vieira e até Bruno Costa, todos no lote de 16 jogadores com maior número de jogos a titular durante a época. Neste século, esta é apenas a terceira vez que o FC Porto passa três anos seguidos sem ser campeão. A primeira, de 2000 a 2002, interrompeu-a com contratações não extraordinariamente caras e feitas no plano nacional, quando ainda se podia contratar cá, a responder a pedidos muito específicos de José Mourinho, de jogadores com os quais já tinha trabalhado (Nuno Valente, Tiago, Maniche ou Derlei) ou que conhecia bem, da sua Setúbal (Paulo Ferreira). A segunda, que até foi de quatro anos, no “tetra do Benfica, de 2014 a 2017, pôs-lhe fim no campeonato do “fair-play financeiro”, com regressos de emprestados como Ricardo Pereira, Sérgio Oliveira, Marega ou Aboubakar e sem fazer contratações a não ser a de Oliver Torres, que já estava acertada com o Atlético Madrid antes da intervenção da UEFA – e, ainda assim, o criativo espanhol só foi titular em oito das 34 rondas do campeonato.
Para voltar a dar cartas, o FC Porto não tem de fazer o “maior mercado de sempre”. Sim, uma coisa não invalida a outra, mas não creio que haja entre as duas o nexo de causalidade que se quer fazer crer. E, sobretudo, para voltar a dar cartas, o FC Porto não tem de dizer que vai fazer o “maior mercado de sempre”. Porque nestas coisas, tudo aquilo de que Farioli não precisa é de que lhe aumentem a pressão que tem sobre os ombros, como André Villas-Boas já fez com Vítor Bruno e com Martín Anselmi, quando resolver disparar para o ar que o FC Porto era um candidato a ganhar a Liga Europa ou que iria abrir um espaço na vitrina do museu do clube para lá colocar o troféu de vencedor do Mundial. Há casos em que não se trata só de não ter noção. É também dificultar o trabalho a quem lá está.
Nota: O Último Passe vai estar aqui de segunda a sexta-feira até 14 de Julho, um dia depois da final do Mundial de clubes. A 15, o primeiro dia útil de defeso, sairá a primeira edição dos Reis da Europa, que depois seguirão a correnteza normal, com todos os campeões nacionais desta época, da Albânia à Ucrânia, numa periodicidade que eu gostava que fosse diária mas que ainda não sei se conseguirei manter tão frequente - até porque há um livro novo em fase de conclusão e o prolongamento da época de futebol levou a que me atrasasse com a fase de escrita... A 4 de Agosto, com o início de 2025/26, voltará o Último Passe, mas em versão vespertina (às 19h), eventualmente não diária. A minha crónica de opinião será um dos conteúdos, esses sim diários, oferecidos apenas a subscritores Premium, mas poderá alternar com outros textos. A partir de 4 de Agosto, também, mas logo pela manhã, terei para vós (para todos, que este será conteúdo gratuito) a Entrelinhas diária, uma leitura de cinco minutos com tudo aquilo que precisam de saber para manter as conversas sobre futebol nas pausas para café no trabalho.