O maior fracasso do Euro
O maior fracasso de Portugal no Euro não foi ter ficado nos oitavos-de-final - isso tem de ser visto como normal. O maior fracasso foi ter desaproveitado muito do talento de que dispõe.
O maior fracasso da seleção portuguesa no Euro 2020 não foi ter perdido com a Bélgica nos oitavos-de-final ou ter acabado apenas em terceiro lugar num grupo que também incluía a França e a Alemanha – isso pode sempre acontecer, tendo em conta o enorme potencial dos adversários. O maior fracasso da seleção portuguesa no Euro 2020 foi ter deixado a prova sem conseguir construir uma ideia de jogo que garantisse espaço para o talento de André Silva, Bruno Fernandes ou até João Félix e que servisse Bernardo Silva. Foi aí que Fernando Santos falhou, porque levou a equipa à prova com os mesmos princípios de jogo que ela tinha antes de possuir todo este potencial ofensivo e acabou a jogar como se na verdade não o tivesse.
No final do jogo, o selecionador nacional fez o “transfer” para o futuro e falou em “ganhar o Mundial”, já no ano que vem, mas é certo que não conseguirá sequer chegar perto enquanto não resolver esta equação e enquanto não definir bem o papel de um Ronaldo que continua a ser imprescindível mas precisa de ser levado a entender o que é verdadeiramente nesta equipa em termos táticos e até que ponto o seu futebol mais peripatético pode condicioná-la na zona de meio-campo. São duas questões profundas, que não podem ser enfrentadas com clichés e lugares-comuns, com tiradas que, sendo verdadeiras, não são respostas. Dizer que “a ideia é ganhar” ou que “temos de ser equilibrados” é tão básico e evidente como dizer que o sol nasce todos os dias ou que a água é essencial à vida, mas não nos deixa mais perto de aproveitar as suas imensas capacidades.
A questão aqui não tem a ver com a polémica que enche os fóruns de discussão pública, não passa por exigirmos uma seleção mais ofensiva e por criticarmos Fernando Santos por ser retranqueiro ou, como agora está na moda, “conservador”. Até porque, se já tinha recusado essa dimensão do debate anteriormente, mais depressa o farei quando a seleção acabou por ser eliminada num jogo em que até foi melhor, dominante – o facto de estar a perder desde o final da primeira parte também terá influenciado as estatísticas – e em que acabou traída por uma Bélgica que as circunstâncias obrigaram a ser tão cínica como era a equipa nacional quando superava as barreiras no Europeu 2016. Se ontem os belgas nos ganharam fazendo seis remates contra 24, há cinco anos, na mesma fase da prova, fomos nós a eliminar a Croácia com um golo a três minutos do fim do prolongamento, ao nosso quinto remate, contra 17 do adversário. Não pode ser eficácia extraordinária quando nos favorece e azar quando sorri aos outros.
A questão passa pelo reconhecimento do talento de uma série de jogadores e da sua incapacidade para o mostrarem em ambiente de seleção nacional. Porque se alguém vier dizer que André Silva até entrou em campo mais de uma vez neste Europeu e não fez um golo, terá razão. Como a terá quem disser que Bernardo Silva foi sempre titular e sempre o primeiro a ser substituído por opção técnica devida a rendimento insuficiente. Ou que a Bruno Fernandes foram dadas oportunidades sucessivas e que ele as foi desperdiçando uma após a outra. A questão é: porquê? Estão em má forma, como já ouvi e li? Mas estão em má forma há anos e não deixam de ser influentes nos clubes quando a seleção os liberta? É isso que me recuso a aceitar como consensual. E é essa a equação que, sabendo mais do que todos nós acerca do tema, o selecionador tem de resolver se quer ser levado a sério quando fala em “ganhar o Mundial”.
Não sou capaz de embandeirar em arco e, de repente, vir para aqui dizer que Portugal tem um lote de talentos incomparável. Não tem. Não temos melhores jogadores do que a Bélgica, que a França, que a Espanha, que a Alemanha, até que a Itália e a Inglaterra. Mas também não temos piores. E muitos dos nossos, que são geralmente fantásticos nos melhores clubes da Europa, não exprimem o talento que possuem em ambiente de seleção. Para cada caso haverá uma razão. Para cada um eu tenho uma opinião – que não é definitiva, mas é a que posso exprimir, estando de fora e não podendo acompanhar aquilo que é trabalhado. É aqui que o input a dar pelo selecionador se torna importante e que a sua discussão pública e sem medos seria fundamental.
André Silva não rende na seleção porque, sendo Cristiano Ronaldo incontornável e, tendo Fernando Santos considerado – a meu ver bem… – que não pode jogar com ele a partir da ala, para não desequilibrar a equipa em transição defensiva, fez dele ponta-de-lança, optando por não trabalhar um sistema que permitisse alinhar com os dois, em dupla atacante. Com Bruno Fernandes o selecionador ainda fez um esforço: até regressou ao 4x2x3x1 para lhe dar o espaço tradicional do “10”, mas a verdade é que para isso resultar teria precisado de um “duplo-pivot” que funcionasse – coisa que o mau momento de William e a pouca dinâmica de saída de Danilo impediram – e de uma referência frontal que Ronaldo nunca quis ser, optando antes por sair frequentemente da posição de ponta-de-lança. Quanto a Bernardo – e a João Félix, que com André Silva no onze teria de ser sempre alternativa, mas que sofre do mesmo problema – acaba por ser o maior sacrificado pela ideia: a ele convêm-lhe equipas de maior posse, de iniciativa constante, sempre mais predispostas a assentar arraiais no meio-campo adversário, mas esta seleção continua a privilegiar outros posicionamentos e filosofias, gosta de ficar mais atrás, de forma a poder aproveitar os espaços atrás da última linha do adversário em rápidas transições.
O maior fracasso de Portugal no Europeu de 2020 foi ser julgado em função dos talentos que inegavelmente possui sem ter criado condições para poder utilizá-los. A equipa cresceu na prova, até acabou com um meio-campo completamente novo face à partida de estreia, mas precisa de definir muito melhor ao que joga. Porque a receita de 2016 servia na perfeição para aqueles jogadores, mas não serve para estes. Até pode servir à equipa, se esta conseguir conjugar outra vez na perfeição todos os predicados que então lhe valeram ser campeã da Europa. Mas sê-lo-á sempre sem alguns dos seus maiores valores em campo e à custa de um futebol mais gregário que torna injusta qualquer avaliação feita com base no talento.