O lado errado do espelho
Os ingleses vivem um momento de sucesso único, mas foram perguntar aos adeptos e eles querem um mundo mais saudável e competitivo. Por cá, pensamos exatamente o contrário.
O radioso espetáculo que foi ontem o Manchester City-Real Madrid, bem como o facto de a Premier League ser a única prova com equipas a jogar nos três dias da última semana europeia de Abril – hoje lá estará o Liverpool FC na segunda meia-final da Liga dos Campeões e amanhã o Leicester City e o West Ham defenderão a honra inglesa na Liga Conferência e na Liga Europa – podiam levar-nos a intuir que por lá se navega a crista da onda e que quanto menos se puser em causa, melhor. Mas não. O futebol é visto em Inglaterra como parte da “herança nacional” e, por isso, há empenho do governo e, imagine-se, até dos clubes como um todo e dos adeptos na sua preservação. E todos entendem que tão importante como os resultados obtidos no topo é a sobrevivência da base. Parece Portugal, mas do outro lado do espelho.
Vem tudo isto a propósito do relatório Crouch, um documento liderado pela deputada Tracey Crouch, que foi construído com base nas preocupações – imaginem só... – dos adeptos sobre a governança do futebol no Reino Unido e que levará não apenas à elaboração de um “livro branco” sobre a matéria como à instituição de um regulador independente patrocinado pelo Estado, de forma a assegurar que as recomendações lá incluídas são de facto levadas a cabo. A Premier League pode ser – e é – a Liga mais bem sucedida do futebol mundial, mas só lá cabem 20 clubes de cada vez e o futebol inglês é muito mais do que os 20 clubes que têm a felicidade de comer àquela mesa híper-mediática. Sim, a maior preocupação dos britânicos é financeira, porque há clubes históricos a caminho de uma falência provocada por exageros cometidos com o intuito de voltar ao topo da pirâmide, mas há também no relatório Crouch questões de ética e moral, como a necessidade de impor um maior e mais rigoroso escrutínio a quem quer entrar no restrito clube dos proprietários. E, completamente à margem deste tema, mas a ele profundamente ligado, ontem foi a vez de Rishi Jain, Diretor de “igualdade, diversidade e inclusão” do Liverpool FC, vir dizer que o confinamento fez aumentar o preconceito nos estádios e que “as pessoas precisam de reaprender a estar em público”.
O que importa para o caso nesta declaração não é tanto o que disse Jain e se ele tem ou não razão, mas sim o facto de o Liverpool FC ter um diretor para a “igualdade, diversidade e inclusão”. Estamos a falar de um clube de topo, de um clube que luta por títulos num país que ainda há três décadas se debatia com problemas gravíssimos de hooliganismo. Não foi noutro mundo, noutra era. Foi há uma geração. Assinalaram-se em meados deste mês de Abril 33 anos sobre o desastre de Hillsborough, o episódio final de uma série imponente de tragédias relacionadas com o hooliganismo – como a final da Taça dos Campeões Europeus de 1985, em Heysel Park - ou com a cada vez maior decrepitude das suas instalações desportivas – como o incêndio na estrutura de madeira das bancadas do estádio de Bradford, no mesmo ano. A questão é que, nesse momento, os ingleses agiram. Foi tarde? Foi, sem dúvida. Foram precisas centenas de mortos para pôr a máquina em andamento. Após o desastre de Hillsborough, provavelmente tão cansado de ver vítimas do futebol como de ver o nome do país envergonhado nas grandes competições internacionais – o interesse do Mundial’90 passava muito por aquilo que iria ser o comportamento dos ingleses – o governo de Margaret Thatcher encarregou o Lord Peter Taylor de elaborar o relatório que veio a estar na base do crescimento do futebol inglês e da transformação a que ele se submeteu nestes 30 anos. O famoso Relatório Taylor.
Três décadas depois, o Relatório Crouch foi feito sobretudo ouvindo adeptos. É aquilo a que os ingleses chamam um “fan-led report”. Mas já foi abraçado na sua totalidade pelo governo de Boris Johnson, recolhendo o apoio do Ministro do Desporto, Nigel Huddleston, e da Secretária de Estado para a Cultura Digital, os Media e o Desporto, Nadine Dorries. Ora uma das medidas que o relatório recomenda é que a Premier League tenha de fazer correr para as ligas abaixo 25 por cento das suas receitas de televisão e eventualmente até 10 por cento das verbas recebidas no mercado de transferências. Porque se os clubes mais abaixo morrerem na tentativa de igualar os que estão mais acima, acaba a base e deixa de haver forma de alimentar o topo da pirâmide. Em Portugal, ao invés, o que se discute é se é boa ideia haver uma partilha mais igualitária das receitas dentro da mesma Liga, entre os três grandes e os outros, porque isso pode vir a prejudicar a capacidade daqueles três virem a competir internacionalmente. Da mesma forma que enquanto o Liverpool FC gasta dinheiro num diretor para a “igualdade, diversidade e inclusão”, os nossos clubes preferem pagar a diretores de propaganda destinados a fazer aumentar o preconceito, a espalhar narrativas de ódio e newsletters que mais não fazem do que diabolizar tudo o que é diferente, impedindo a entrada de adereços de apoio às equipas visitantes e servindo-se do que de mais nefasto têm as redes sociais como fator de difusão exponencial desta forma de pensar.
O futebol português está num comboio de alta velocidade em direção à destruição total e muita sorte temos nós por (ainda) não termos chegado ao capítulo da tragédia que os ingleses experimentaram nos anos 80 do século passado. Não sou grande adepto da intervenção do Estado em tudo e mais alguma coisa – como o também não será, certamente, o governo de Boris Johnson, saído da direita conservadora e liberal. Mas há coisas que é preciso fazer. E Portugal tem de sair do lado errado do espelho antes que seja tarde demais.
Em Portugal seria preciso mais do que uma geração para se pensar numa abordagem similar. Porque um relatório que se baseia na opinião dos adeptos esbarraria num facto: praticamente, só há adeptos dos três grandes. Mesmo que tenham alguma costela de outro clube, é o interesse dos grandes que move os adeptos. Que acham que qualquer medida é sempre em benefício do outro e nunca do seu clube. Em Inglaterra também há clubes com mais adeptos, como é óbvio, mas há uma distribuição muito maior. E quem é de um clube não é de outro. Aqui, a cultura dos três grandes está tão enraizada que nem as excepções - Vitória, agora o Braga, e pouco mais - conseguiriam disfarçar. O que não quer dizer que não se deve fazer nada. Porque tal como está a nossa liga vai definhando e o problema alastra-se pelas restantes divisões.
Tadeia, a sua análise a Roger Schmidt é a mesma que tinha sobre Ralf Rangnick, ou seja, agora é que vai ser. Só pergunto se a Bundesliga é assim tão competitiva? O Bayern vai em dez títulos consecutivos e, como não há, na minha modesta opinião, equipas inacessíveis, chega à hora da verdade na Champions e baqueia. Tudo o resto, sobre as paletes de jogadores para o SLB e a saída de outros tantos é sempre a mesma coisa. Quero ver se os atuais defensores do alemão, no natal, estarão aqui a defendê-lo se as coisas não correrem bem.