O lado certo da goleada
A fome permanente desta equipa do Benfica, a insensibilidade de Schmidt ao cansaço alheio e a debilidade do FC Bruges permitiram ao futebol português voltar ao lado certo das goleadas na Champions.
Rafa entregou a Gonçalo Ramos o prémio de homem do jogo do Benfica-FC Bruges e fez bem, porque a exibição do ponta-de-lança algarvio foi do melhor que se viu em campo na goleada dos encarnados. A começar por um fator que é tudo menos irrelevante: Ramos fez o passe para o primeiro golo e marcou ele mesmo o segundo e o terceiro. Num ápice, entre os 38’ e os 57’, numa altura em que os belgas começavam a conseguir sair da toca depois de um início complicado, o Benfica via-se a ganhar por 3-0. E fim de papo, não tivessem os encarnados ignorado tudo o que são conselhos de poupança, aos quais Roger Schmidt parece ser alheio, e continuado a pressionar sem bola e a imprimir ao jogo um ritmo vivo com ela, em busca de mais golos e de uma noite afirmativa que sentiam que lhes fazia falta, quanto mais não seja para serem olhados de outra forma no sorteio da semana que vem. É sinal de uma boa equipa, esta falta de complacência com um adversário que se sente momentaneamente débil. E bate tudo certo, há uma coerência importante entre a vontade dos jogadores para continuarem a acelerar, a capacidade física e tática para o fazerem e a insensibilidade de Schmidt perante sintomas de cansaço que eles venham a revelar, bem como a sua resistência às poupanças até de jogadores do seu núcleo duro que estão à beira da suspensão – ainda ontem, com tudo resolvido, manteve Florentino e Gonçalo Ramos em campo até final, mesmo sabendo que se eles vissem um amarelo falhariam o primeiro jogo dos quartos-de-final. Aqui, já o disse, não há doutrina universalmente válida – o importante é que haja coerência. E o Benfica mostrou-a, primeiro que tudo, em campo. Marcou o quarto, marcou o quinto e fez com que o futebol português pudesse voltar a estar no lado certo das goleadas na fase a eliminar da Champions pela primeira vez desde que o FC Porto aviou o FC Basileia por 4-0 em Março de 2015. Desde aí, os dragões apanharam 6-1 do Bayern Munique, 5-0 e 4-1 do Liverpool FC; o próprio Benfica tinha perdido por 4-0 em Dortmund e até o Sporting contribuíra com um 0-5 em casa com o Manchester City. É caso para dizer que já não estamos habituados a tanto luxo, mesmo que se sabia que daqui para a frente as dificuldades serão muito maiores.
O avançado completo. Mas voltemos a Ramos. O jogo tinha começado com um Benfica forte e um FC Bruges fraco. Há o golo anulado a João Mário, oportunidades perdidas e uma equipa belga totalmente desorientada na estratégia desenhada por Scott Parker, uma estratégia em que o lateral-direito, Clinton Mata, devia fechar por dentro, como terceiro central, pedindo a Sowah, que é extremo, que baixasse como lateral. A sorte do treinador inglês é que não sofreu golos nesse período de total desorientação, em que o corredor esquerdo benfiquista tinha pela frente uma auto-estrada e em que, fruto da tal colocação híbrida de Sowah, a equipa não conseguia definir a altura da última linha nem controlar o espaço entre elas. O Benfica tinha ficado a dever a si próprio o encerramento da eliminatória nesses 30 minutos, mas ainda havia 0-0 quando Parker percebeu que a equipa não conseguia fazer o que ele imaginara e mandou toda a gente para um 4x2x3x1 mais fácil de interpretar. E o FC Bruges saiu da toca, começou a chegar perto de Vlachodimos. Só que aí apareceu Ramos. Primeiro, com um passe digno de um médio, a descobrir a única diagonal possível para meter a bola da esquerda para a área, onde Rafa a recebeu, acarinhou, e a depositou na baliza também com a única solução possível – empurrando-a com o peito do pé direito, de forma inesperada. Depois, com um slalom que mais parecia de um segundo avançado, de um dez, driblando primeiro Mechele e passando depois numa nesga entre Nielsen e Buchanan, antes de rematar com violência para a baliza de Mignolet. Por fim, com uma finalização a um toque própria de ponta-de-lança, com uma antecipação, um ataque à bola à frente do defesa, que já é a sua imagem de marca, mas que o desatento Sylla ainda não conhecia, porque ficou pacientemente à espera que a bola vinda de Grimaldo lhe chegasse aos pés para a aliviar. Gonçalo Ramos tem um passado de médio na formação e isso foi dito e escrito vezes sem conta para justificar a adaptação que dele fez Nélson Veríssimo à posição 10 no 4x2x3x1 com que o Benfica encerrou a época passada. Mas o que ele é é avançado. É um avançado completo, que festejará durante esta época os 100 jogos pela equipa principal e está a beneficiar dessa continuidade para crescer e se tornar no jogador de seleção que outros poderiam ter sido se não se tivessem deixado encantar pelos cantos da sereia do mercado e optado demasiado cedo por realidades em que não são tão bem compreendidos e assimilados.
O resgate do soldado Cucurella. Há poucas coisas de que os americanos gostam mais do que de uma boa história com um “underdog”. Ontem, Todd Boehly, o dono norte-americano do Chelsea, esteve nas bancadas de Stamford Bridge para ver a sua equipa virar a eliminatória contra o Borussia Dortmund, com uma vitória por 2-0, e teve direito à sua história, na pessoa do espanhol Marc Cucurella, resgatado às masmorras da ignomínia por um treinador entre a espada e a parede. O lateral do cabelo indescritível vinha sendo tão ridiculamente mau desde a sua contratação ao Brighton, em Agosto, por 65 milhões de euros, que até tinha sido assobiado pelos próprios adeptos azuis quando entrou em campo, a 20 minutos do fim, na partida da primeira mão, em Dortmund. Graham Potter entendeu a mensagem e não voltara a chamá-lo desde essa altura, mas é aqui que o argumento se adensa. É que tendo o Chelsea estado tão ativo no mercado e não tendo podido inscrever todos os seus reforços de Janeiro para a segunda metade da Liga dos Campeões, a opção – aparentemente incompreensível – foi a de deixar de fora o central Badiashile, titular desde que chegou do Mónaco. E foi assim que Cucurella voltou a ver-se em campo, não só como titular como também enquanto central pela esquerda, no jogo mais importante da época. E fez uma exibição tão boa que acabou por ser escolhido como melhor em campo pela UEFA. Não vi ainda o jogo e portanto não posso dar uma opinião segura, mas o episódio exemplifica perfeitamente a montanha-russa que é este Chelsea. Assim de repente, parece ser o adversário que toda a gente vai querer para os quartos-de-final. Mas daqui até lá ainda falta um mês. E num mês acontece muita coisa nestas equipas que mais parecem séries da Netflix ou da HBO.