O império dos sentados
Já estou em Doha, para o primeiro Mundial dois-ponto-zero. Hoje, apesar de tudo, houve uma bela conferência de imprensa de Bernardo Silva e Fernando Santos. E um grande Espanha-Alemanha.
Chego a Doha, de noite, como convém, e as luzes impressionam. A capital parece ter sido arrancada do chão na modernidade da sua baixa, a contrastar com a vastidão branca e mais rasteira dos bairros tradicionais. O Mundial também é do mais moderno que podemos imaginar. Li que Hansi Flick esteve sozinho na conferência de imprensa da Alemanha, ontem, porque as 32 equipas são forçadas a fazer todas as conferências que antecedem os jogos no Centro de Media Principal, em Al-Khor, e o treinador não quis forçar nenhum dos seus homens a fazer a viagem de cerca de 200 quilómetros desde o campo de base ao local onde está tudo centralizado. Sofri bastante com as distâncias, por exemplo, em provas como o Mundial de 1994, nos Estados Unidos. Fiz nesse mês vários “costa-a-costa”, perdendo pelo caminho a hipótese de acompanhar devidamente a competição. Esse também foi o Mundial marcado pela normalização da informação, pela ditadura dos assessores da FIFA, que tinham até um protocolo para ordenar os meios que tinham primazia e podiam ir a conferências de imprensa e aqueles – nos quais me incluía, como enviado do Expresso, um semanário de informação geral de um país que nem se qualificara – que tinham de se contentar com o acesso ao feed onde elas eram transmitidas. Foi o Mundial do fim do acesso aos jogadores, às equipas e aos treinadores. O Mundial de 2022 completa o círculo. No Qatar, foi tudo feito a pensar na comodidade dos jornalistas. Em Doha, os felizes detentores de uma credencial de media podem fazer uma de duas coisas. Se já tinha lido casos de gente que anda de estádio para estádio e vai assistir a quatro jogos num dia, hoje percebi que é possível cobrir todo o Mundial sentado na mesma cadeira. Vêem-se os jogos no Media Centre, intercala-se cada jogo com um saltinho a uma das duas salas de conferências ao lado, onde os treinadores se sucedem a um ritmo vertiginoso. Passámos de um jornalismo em que o sentir tinha importância naquilo que se escrevia nas reportagens ao exercício de uma atividade completamente diferente, em que o jornalista já nem se mexe e esgota o seu espírito agonista a levantar o braço, a lutar para ser visto e ter o direito a fazer uma pergunta à qual nove em cada dez protagonistas vão acabar por responder à defesa e com os lugares-comuns que se ensinam nas sessões de media training. Passámos do império dos sentidos ao império dos sentados. E quem perde é você, estimado leitor.
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