O golo que Pelé não fez
O golaço de Pedro Gonçalves, num vistoso chapéu de 50 metros a Ramsdale, deu o mote a uma equipa do Sporting que cresceu desde trás e mostrou, ante o Arsenal, que no futebol não há impossíveis.
Cresci sem vídeo e sem internet, a ouvir e a ler sobre a lenda de Pelé, o maior futebolista que o Mundo alguma vez tinha conhecido. E uma das narrativas contava como o Rei tentou uma vez um golo de meio-campo, com um chapéu ao guarda-redes checoslovaco Ivo Viktor. E atenção que não foi num dia qualquer, foi na estreia no Mundial de 1970. Em Pelé, o golo era a regra e a notícia foi sempre a exceção. Nesse Mundial, que o consagrou a ele e à seleção dos quatro camisas 10 que era aquele Brasil, a notícia foi a defesa impossível do inglês Banks àquele cabeceamento que, a cada vez que o vemos, parece que vai entrar. Foi a finta ao guardião uruguaio Mazurkiewicz, a fazer-lhe passar a bola por um lado e a ir buscá-la pelo outro, antes de chutar cruzado, quase sem ângulo e em claro desequilíbrio, mas ligeiramente ao lado do poste. E foi o remate de meio-campo, que ele já levaria pensado, porque disse no final da partida que sabia que “os goleiros europeus jogavam sempre um pouco adiantados”. A altitude de Guadalajara terá tido algum efeito, segundo Viktor: o guarda-redes contou mais tarde que jogava uns metros à frente da linha de baliza porque sabia que teria sempre tempo de voltar aos postes se alguém se lembrasse do que se lembrou Pelé, que era encobri-lo com um chapéu de meio-campo. As imagens são míticas, a sombra negra de Viktor a correr em desespero para a baliza e a bola, mais veloz do que o normal, a passar por cima dele mas a sair por um pequeno nada ao lado do poste. Esse golo, de meio-campo, ficou na história como o golo que Pelé tentou várias vezes e nunca fez. Pedro Gonçalves fê-lo ontem – e também não foi num dia qualquer, foi nuns oitavos-de-final da Liga Europa, contra o Arsenal, com o Sporting em desvantagem. Paulinho recuperou a bola, ela sobrou para o médio leonino, que deu dois passos, pôs um olho na bola e outro na baliza, onde viu Ramsdale onde tinha que estar, que era uns 15 metros à frente da linha. Vai daí e mostrou que é seguidor da corrente filosófica de que vos falei aqui anteontem, o “haalandismo”, ao meter-lhe a bola por cima, num chapéu medido com precisão total. Desta vez sem o efeito da altitude e por isso quase em câmara lenta, como é normal num remate que vai perdendo velocidade, a bola seguiu e entrou na única nesga por onde podia entrar, ante o salto desesperado mas que quase tocou a barra do guarda-redes inglês. Definido pelo próprio, o “haalandismo” carateriza-se por não pensar, por simplesmente chutar e fazer golos. A não ser que a coisa se torne uma obsessão, como a partir de certa altura aconteceu com Pelé, que via aproximar-se o final da carreira e não tinha ainda feito o golo que lhe faltava, ultrapassa-me o que passa na cabeça de alguém que, naquela situação, se lembra de chutar à baliza. Se pensar muito, não só não o faz, como se o fizer acaba por perder a oportunidade. Mas só nestes momentos de irresponsabilidade é que saem lances de génio como este ou o golo de letra de Nuno Santos ao Boavista. E é por isso, também, que gostamos de futebol.
Uma grande retaguarda. Na semana passada, num texto que muitos donos de bolas de cristal já fizeram desde ontem à noite o favor de me recordar, escrevi aqui que o Sporting tinha mostrado frente ao Arsenal que aprendera com as lições táticas que lhe tinham sido dadas por Erik Ten Hag e Pep Guardiola na época passada, que tinha crescido face à equipa que até se apurara na fase de grupos da Liga dos Campeões, mas que lhe faltara qualidade individual para poder encarar esta segunda mão no Emirates com mais otimismo. Ontem, no Futebol de Verdade, dei aos leões uns 10 por cento de possibilidades de seguirem em frente na Liga Europa frente ao líder da Premier League. Sim, ao contrário do que aparentemente sucedeu com muita gente – que no entanto tinha a confiança fechada a sete chaves numa gaveta lá de casa, não fosse alguém descobri-la –, o apuramento dos leões, a mim, surpreendeu-me. Mas, vistos os jogos, há que dizer que foi inteiramente merecido e que nem é justo que se diga que se baseou na poupança de jogadores por parte dos adversários: o Arsenal acabou por meter toda a gente em campo e ao Sporting também faltou gente importante nas duas partidas. O empate de ontem foi construído a partir de uma retaguarda de classe, apesar de lhe faltar o capitão Coates. Adán assinou um par de defesas impossíveis e não vacilou com os pés, fazendo sempre boa avaliação dos momentos em que devia jogar curto ou longo. O que dão à equipa as subidas com bola e, depois, a velocidade de recuperação de Saint Juste faz toda a diferença na forma como joga aquela primeira linha, onde Diomande superou a prova de fogo, a jogar ao meio, e Inácio transpirou segurança. Mesmo tendo-se feito expulsar com uma entrada dura no meio-campo adversário – o que só se explica com a inexperiência a impulsividade dos seus 21 anos –, Ugarte ganhou duelo sobre duelo a meio-campo, fazendo até mais do que impor-se nas divididas: saía a jogar, de frente para o jogo, e em condições de ativar os três da frente. Sem Porro, falta a este Sporting a capacidade no um para um que o tornava mais forte nas saídas baixas – e daí alguns chutões para a frente depois de atrair o adversário, em busca da receção de Paulinho –, mas foi ainda assim a partir de trás que se construiu a capacidade dos leões para reagirem a um final de primeira parte em que tiveram menos bola e mandarem no jogo durante todo o segundo tempo. No prolongamento, faltou gás, que o ritmo habitual a que esta equipa joga não é assim tão alto, as cãibras foram-se sucedendo e as alternativas no banco não eram assim tantas. Rúben Amorim superou as duas barreiras a que aludi aqui ontem, a mental e a estratégica, com seis sub21 nos 16 jogadores que meteu em campo: dois miúdos de 18 anos, dois de 19 e dois de 21. E isso é obra.
E agora? Hoje há sorteios da Liga dos Campeões e da Liga Europa. Podem até devolver-me o que vou escrever daqui por uns tempos – e isso seria muito bom sinal – mas continuo a não estar otimista quanto às possibilidades de Benfica e Sporting. É preciso percebermos que uma coisa é ganhar uma vez a equipas com orçamento muito superior e outra, bem diferente, é fazê-lo de forma reiterada. Que uma coisa é vermos o Benfica superar o Paris Saint-Germain na fase de grupos ou o Sporting eliminar o Arsenal nos oitavos-de-final e outra, bem diferente, é vê-los fazer isso duas vezes nas rondas que lhes faltam até chegarem à final. A Liga dos Campeões é, desde 2004, quando o FC Porto a ganhou, um feudo exclusivo das quatro maiores Ligas. A Liga Europa é, desde 2011, quando o FC Porto a ganhou, um feudo exclusivo de equipas espanholas e inglesas, com uma intromissão alemã. Na Champions, o Benfica entrará com ligeiro favoritismo contra qualquer das duas equipas de Milão – Inter e Milan –, os rebuçados ainda em prova. O Chelsea não tem sido fantástico mas parece em crescimento (e potencial não lhe falta) e o SSC Nápoles, por outro lado, tem sido excelente, mas pode cair, sobretudo porque vai estar de férias na Serie A, tanta é a vantagem de que dispõe, e isso pode levar a algum desfoque. Real Madrid, Manchester City e Bayern são os suplícios a evitar. Na Liga Europa, quem pode tornar o caminho do Sporting menos complicado são os alemães do Leverkusen e os belgas da Union Saint-Gilloise, apesar dos seis golos à Union Berlim. Mais complicados, há a capacidade defensiva da AS Roma de Mourinho – três zeros seguidos contra RB Salzburgo e Real Sociedad –, o poder atacante do Feyenoord, que ontem fez sete golos ao Shakhtar Donetsk, e a história do Sevilha FC. A Juventus parece estar melhor do que na fase de grupos da Liga dos Campeões – além de que vê na Liga Europa a única hipótese credível de entrar na próxima Champions, e o Manchester United é a maior potência em prova. As dificuldades vão aumentar e, repito, o difícil não é ganhar a uma equipa destas Ligas mais ricas. É ganhar-lhes nos quartos-de-final, depois nas meias-finais e por fim na final.
Agarrei-me aos 10% que nos vacinaste com unhas e dentes.
Mesmo quando o Amorim teve que meter no miolo Essugo e Tanlongo eu pensei que tínhamos ali a nata dos futebolistas e que entrasse quem entrasse naquele momento chegava e sobrava para os milionários gunners, tal era o meu estado de "embriaguez" que a exibição me estava a deixar naquele momento e sobretudo a acreditar...acho que foi muito por aí que esteve a chave do jogo, os jogadores do Sporting foram acreditando que eram capazes.
Recordo uma das primeiras intervenções do Essugo que foi desastrosa e ia dando golo, os colegas ampararam-no, o Inácio abracou-o e o Esgaio deu-lhe um calduço! Abre os olhos menino, poe-te fino tu consegues! E conseguiu!
Bateu-se que nem um jogador experimentado.
Uma noite de muito orgulho!
Se podem acontecer muitos milagres destes?
Não não podem. Mas após o Man City do golo do Chandao, este já é o segundo a que assisto!
Ontem o Ruben Amorim dizia que estava chateado por não ver exibições destas todos os fins de semana. Também eu, que desespero com esta bipolaridade (palavras do treinador). Mas pelo menos esta passagem vem atenuar-me a dor e sofrimento desta época. Nunca pensei que o Sporting tivesse hipótese de passar. Nem 10% eu dava. Estava com medo de mais uma goleada. Disse varias vezes aos amigos que só rezando muito, de joelhos e tudo. Espero é que a próxima época seja melhor preparada e, se possível, sem vendas, principalmente aquelas em cima da hora do fecho do mercado que deixam a equipa mais fraca.