Muitas das reações que tive ao Último Passe de ontem, acerca da crise do Valência CF e do que ela pode implicar no futebol português, foram no mesmo sentido. Vinham dizer que o clube espanhol está a pagar o facto de ser uma peça no carrossel de mercado montado por Jorge Mendes e daí saltavam para a conclusão de que o futebol está podre. Ora se a premissa é mais ou menos indiscutível, pois muitas das transações feitas em Valência são difíceis de entender, a verdade é que as autoridades ainda não conseguiram encontrar ali nenhuma irregularidade e que o problema não é exclusivo do futebol. É da sociedade. O dinheiro, tal como o Deus do hino de William Cowper, “move-se de forma misteriosa”. E o futebol não tem a capacidade para ser um Mundo à parte.
O que fui dizendo àqueles a quem consegui responder – e repeti no Futebol de Verdade de ontem – é que o que se tem passado em Valência é muito maior do que Mendes. E que, ainda assim, não conheço nenhuma área da sociedade moderna que seja tão escrutinada como o futebol, quanto mais não seja porque o futebol envolve paixão e tende a diabolizar todos os que representam interesses opostos aos que os nossos corações adotaram. Um gigante da finança internacional como a Fosun de Guo Guangchang Foyo poderia passar pelos buracos da chuva enquanto andasse por aí a comprar o Millennium BCP, a EDP, a REN, a Luz Saúde, a Fidelidade, a Tsingtao ou o Club Med, mas assim que compra o Wolverhampton WFC e entra nesse esquema que move jogadores para cá e para lá passa imediatamente, na perceção popular, a especialista em manigâncias. E não estou com isto a dizer que não o seja. Só digo é que, se o é, já o era antes de chegar ao futebol. E que o futebol, aqui, é apenas um dos muitos Mundos que os donos do dinheiro encontram para o fazer chegar onde pretendem. Já dizia o Garganta Funda de Watergate: “Segue o dinheiro!”
A questão é que seguir o dinheiro não é tarefa mundana, até porque a sociedade encontrou formas de lhe obscurecer as movimentações, como as “off-shores”. Não foi o futebol que criou as “off-shores”. Não foi o futebol que inventou as Ilhas Caimão ou os bancos suíços. Conscientes disso, alguns leitores avançam na proposta de criação de uma ilha que isolasse o futebol do resto do Mundo. “E se a FIFA ou a UEFA criassem as condições para o futebol se tornar impermeável à alta finança?” Afinal, quase todos os que por lá passaram – a exceção são provavelmente os que ganham muito mais dinheiro agora – gostavam mais do futebol de há 40 anos, quando o dinheiro não tinha a importância de agora. Era mais romântico? Era! Mas, mais uma vez, todo o Mundo o era. Não me levem a mal, mas parecem os nossos avôs a lembrar que começaram a namorar as nossas avós à janela, que naquele tempo não havia essas modernices das discotecas (se falarem comigo) ou das redes sociais (se falarem com um adolescente de hoje). O Mundo não volta para trás. Há que escrutinar o dinheiro, sim, mas é impossível impedi-lo de entrar num universo que interessa a tanta gente como o futebol de alto nível. Sim, que o problema não está no futebol mas sim no nível dos futebolistas e na atenção que lhes dedicamos. Ou vocês acham que os gigantes da alta finança andam a perder tempo com os clubes da segunda divisão regional?
Basta, além disso, falar com alguns dos nossos melhores futebolistas dos anos 70 e 80 – e alguns deles foram meus colegas regulares em painéis televisivos. Regra geral, não puderam amealhar nada que se pareça com o que ganham os bons jogadores de hoje. E isto serve para abrir os olhos a muita gente que pede este “back to basics”. O que acham que iria acontecer caso de repente a FIFA encontrasse a solução legal – que esse seria o primeiro problema – para impermeabilizar o futebol relativamente à influência do dinheiro? Lá está: o dinheiro move-se de formas misteriosas e rapidamente encontraria um universo paralelo para chegar onde quer. Se, por hipótese, a FIFA limitasse a um décimo o dinheiro que circula no futebol e surgisse – como rapidamente surgiria, porque o Mundo é livre, desde que dentro dos limites da lei – uma organização rival que não impusesse essas limitações, onde é que acham que iam estar os melhores clubes? Os melhores jogadores? E o que fariam vocês nesse momento? Continuariam a ver o Ronaldo, o Messi, o Neymar, o Lewandovski, as equipas de Guardiola e Klopp, ou mudariam de canal e tiravam o rabo do sofá e iam ver o Zé Mané, orientado pelo senhor Joaquim da retrosaria, porque ambos têm salário limitado? E se falássemos das vossas profissões: recusariam um salário dez, vinte, cinquenta vezes superior porque acham que a alta finança está a mais no Mundo moderno? Ou ela só está a mais no futebol, na profissão dos outros?
O escrutínio do dinheiro é um problema, sim. Mas é um problema global. Defendo a clareza de todas as operações. No futebol como na banca ou no setor dos seguros e da energia. E, além de compreender que isso seria impossível dentro do quadro legal de uma sociedade livre e moderna, não vejo nenhuma razão para achar que o futebol deva ser um Mundo à parte. Quanto mais não seja porque somos nós, os que gostamos dele, que fazemos dele especial ao segui-lo com a intensidade e a apetência consumista que vamos revelando em todos os nossos interesses. Sim: no fundo, a culpa é nossa.