O futebol e o doping económico
Tebas e Guardiola andam pegados. E os dois têm razão. Um porque identificou o problema do doping económico, o outro porque contribuiu para que se lhe visse o lado oculto.
Que os dois se desprezam já não havia dúvidas e não tem a ver apenas com o futebol: além de ser treinador do Manchester City, Pep Guardiola é de esquerda e independentista catalão, ao passo que o presidente da Liga Espanhola, Javier Tebas, é defende a unidade de Espanha, militou na ultradireita do Fuerza Nueva e hoje apoia o Vox. A última troca de tweets entre os dois, mesmo em catalão, algo a que Tebas se terá sujeitado só para manter a conversa viva, vale bem a pena para se entender o futebol de hoje. Na polémica, os dois têm razão – ainda que sejam razões diferentes. Guardiola porque lembra a incapacidade total da Liga Espanhola para andar na mesma carruagem da Premier League, Tebas porque contesta a influência dos “clubes-estado”, como o City, considerando-os culpados de “doping económico”. E é nestes argumentos que estão as lições a retirar pelas autoridades futebolísticas. Porque este doping não é unidirecional. Há dinheiro que entra e há dinheiro que sai.
A polémica começou com uma intervenção televisiva de Guardiola, que mandou uma bicada em Tebas, como que a responder a sucessivas intervenções em que o presidente da Liga espanhola identificou o Manchester City e os outros clubes igualmente ricos como “um perigo para o futebol”. “Que o senhor Tebas aprenda com a Premier, ele que pensa saber tudo e mete o nariz em casa dos outros”, disse Guardiola. Tebas não se ficou e usou o Twitter para responder a Pep… em catalão. “Eu com a Premier aprendo todos os dias, mas seria bom que te ensinassem algo sobre macro-economia futebolística, sobre o efeito dos clubes-estado na inflação dos salários, sobre demografia, sobre a penetração da Pay-TV”, escreveu, deixando ainda uma “ameaça”. “Olha que sobre a absolvição do TAD ao Manchester City teremos em breve novidades”. Guardiola replicou: “De macro-economia não sei nada, mas explica-me tu porque continuamos tão longe da Premier depois de duas décadas de sucessos incríveis do futebol espanhol”. E Tebas treplicou, com gráficos, alegando que os clubes ingleses já vendem direitos de forma coletiva “há 30 anos”, enquanto os espanhóis só lá chegaram há sete, ou que o Reino Unido tem “mais 30 milhões de habitantes”. “Mas devias preocupar-te com o City, que acumulou mil milhões de perdas. Os teus patrões não são investidores, como lhes chamas, mas sim destruidores de dinheiro que criam inflação. Terias tu vencido tanto sem este doping económico”.
É fácil entender que ambos têm razão. Guardiola precipitou-se entrando numa discussão que não lhe traz nada só porque antipatiza com Tebas e com o rumo que este tem dado à Liga Espanhola – não estaria à espera de resposta, porque de facto tem telhados de vidro, mas nisso tem razão, porque a Liga Espanhola nunca aproveitou o facto de lá ter ao mesmo tempo Messi e Ronaldo, Neymar e Modric, Guardiola e Mourinho… Ainda assim, por mais antipática que nos seja o personagem, por mais que Tebas só veja a parte da realidade que lhe convém – nem todo o conhecimento de macroeconomia explicará como é que um setor está em crescimento e evolução quando as suas principais marcas, o Real Madrid e o FC Barcelona, se debatem com risco de falência –, foi ele quem colocou o dedo na ferida. Que efeito tem no futebol este doping financeiro de que se queixa o presidente da Liga Espanhola? Mesmo que fechemos os olhos à origem deste dinheiro, nem sempre obtido das formas mais legais ou com respeito aos mais elementares direitos humanos, os clubes-estado, como o Manchester City (pago pelos milhões do Abu Dhabi), o Paris Saint-Germain (patrocinado pelo Qatar) ou, em certa medida, o Chelsea (Abramovich não é um estado mas tem mais fortuna que muitos deles) investem (ou destroem dinheiro) no futebol sem se preocuparem com os prejuízos. O que até podia ser positivo, não estivessem eles, sempre que acumulam perdas, a subir o nível de investimento necessário para os competidores lhes darem luta e a encaminhar-nos para uma de duas realidades: ou só eles é que ganham ou os outros, sempre montados numa dose de otimismo superior à recomendável, se encaminham para a ruína a cada dia que tentam equiparar-se. No fundo, é a inversão do paradigma de Amorim: acham sempre que vai dar certo. Mas e se não dá?
Eu, que de macroeconomia entenderei ainda menos do que Guardiola, acrescentaria aqui uma segunda pergunta: que tipos de doping financeiro podemos identificar? Ou melhor. Será que, tal como na musculação temos o “bulk” e o “cut”, uma fase em que se come à bruta para aumentar, outra em que se restringem calorias para secar, também neste processo há duas fases – e só vejo preocupação em identificar uma. Tebas já identificou os clubes-estado como responsáveis pela fase “bulk” do mercado do futebol. São eles que esbanjam no futebol o dinheiro sanguinário ganho noutras áreas da sociedade. Mas então como é que o futebol não está cheio de clubes e Ligas ricos? Quem é que faz o “cut”? Quem é que leva esse dinheiro para fora do futebol? Aqui não se trata de uma operação de proveniência única, porque se há coisa que não preocupa o sheik Mansour, o emir do Catar ou Roman Abramovich é lavar dinheiro. Eles metem-no nos clubes e só querem ganhar troféus a qualquer custo. A questão é que há muita gente que percebeu isso antes e que se encarregou de fazer o “cut”, de levar este dinheiro para longe do futebol, originando esta realidade em que vivemos, na qual o jogo cada vez move verbas mais astronómicas mas os seus clubes continuam a registar perdas. Os jogadores e os treinadores de topo ganham muito, mas isso acaba por ser justo, além de ser uma ínfima parte do bolo. O problema real não está neles, nos Ronaldos, nos Messis e nos Guardiolas. O problema real está nos fundos de investimento – e investimento aqui é um eufemismo –, nos empresários e em toda uma casta de gente que se encarrega de pegar neste dinheiro para o esconder algures através de transferências inflacionadas. É aí que a legislação tem de atacar. Porque se o dinheiro dos “destruidores”, como lhes chama Tebas, ficasse no futebol, o mercado regular-se-ia a si mesmo.