O futebol e a matriz de risco
Ontem, com mais de 27 mil casos positivos, o governo inglês anunciou o regresso do público aos estádios. A vacinação tornou obsoleta a matriz de risco, mas Portugal continua à espera.
As meias-finais do Europeu’2020 jogam-se hoje, em Wembley, debaixo de alguma polémica, porque as condições de quarentena impostas pelo governo britânico aos visitantes impedem, na verdade, a chegada de apoiantes em tempo útil e limitam a residentes a possibilidade de ver ao vivo as seleções de Itália, Espanha, Inglaterra e Dinamarca. No entanto, mesmo que isso seja não válido para quem chega do exterior, o governo de Boris Johnson já anunciou que a nova época vai começar sem limitações no que a público diz respeito. Terão os britânicos controlado a pandemia? Não. Mas perceberam que a vacinação trouxe uma nova realidade. E nesse aspeto dão uma lição ao governo português, cujo chefe, o primeiro-ministro António Costa, não evitou o desconforto nas explicações dadas ontem para a submissão total ao que emana da DGS, com referências em tom mais irritadiço a cada vez que as fazia aos “técnicos” e aos “especialistas”.
Creio que não pode sequer ser levada a sério a proposta feita pela Torcida Verde, uma das claques do Sporting, que sugeriu o adiamento do início da temporada para Setembro, para que possam ser evitadas as “condições esquizofrénicas” de acesso aos estádios. As equipas já estão a trabalhar, têm ciclos e micro-ciclos preparados, e a época de 2021/22 não tem razões para ser tão comprimida como foi a de 2020/21. A questão aqui deve ser outra: haverá ainda razões para impedir a presença de público nos estádios? Para continuar a causar gigantescos prejuízos aos clubes, por enquanto impedidos de vender bilhetes de época ou de contar nos seus orçamentos com as receitas de merchandising associadas a dias de jogo? E, não sendo eu especialista em saúde, diria que não. “Mas o total de casos positivos continua a aumentar todos os dias”, responder-me-ão. “A nossa matriz de risco está no vermelho”, continuarão. “Estamos como estávamos em Fevereiro”, reforçarão. Certo. A questão é que a vacinação terá transportado o Mundo para um panorama em que a matriz de risco está desatualizada e em que a base da análise terá de ser outra.
O Reino Unido teve ontem 27.334 casos positivos de infeção com SARS-CoV. Portugal teve 1.483. Estamos numa proporção de 18 para 1, cerca de um terço da proporção da população total – no Reino Unido vivem 66 milhões de pessoas, em Portugal pouco mais de dez milhões. E, no entanto, Boris Johnson prepara o regresso à normalidade. É verdade que os britânicos estão à nossa frente em termos de vacinação: 86% dos adultos já receberam a primeira dose da vacina e 64% têm a vacinação completa. Mas, mantendo sempre presente que a pandemia é real, ameaçadora e existe muito para lá de “uma gripezinha” – se há coisa que daqui não levam são negacionismos – parece-me que começa a ser altura de governo português encarar o futuro e deixar de ceder ao alarmismo da informação televisiva. Costa tem sido cauteloso, prefere prevenir e não remediar e trata os números atuais de forma semelhante à que tratou os do Inverno, quando, no pico da terceira vaga, tivemos, a 28 de Janeiro, 28.432 casos positivos e 303 óbitos provocados pela pandemia. A média dos últimos sete dias é de quatro mortos por SARS-CoV no território nacional.
É grave? Claro que sim. Mas, antes de concretizar, deixem-me fazer aqui um parêntesis: não acho que o futebol seja mais importante do que as outras áreas da sociedade e da economia. É, simplesmente, a que trato neste espaço. Feito o parêntesis, explico: a gravidade do que vivemos não justifica que, a menos de um mês do início da nova época de futebol, não haja ainda planos concretos para permitir o regresso do público aos estádios. O recente recuo no desconfinamento em função de uma matriz de risco que já serviu mas foi tornada obsoleta pela realidade da vacinação parece ter travado os planos traçados pelo secretário de estado do desporto em meados do mês passado, quando chegou a ser concretizado o regresso do público a jogos de formação. Neste momento, em rigor, ninguém pode saber se vai poder receber espectadores em 2021/22 – e isso é catastrófico em termos de planeamento de mais um ano de exercício, que ainda por cima se segue a dois anos já seriamente prejudicados pela pandemia.
Pode haver a tentação de dizer que “se os clubes estivessem assim tão aflitos não andavam por aí a gastar dinheiro em jogadores”, mas a realidade não é assim tão simplista. Os clubes desportivos não são negócios que visam o lucro, são empresas que visam o “break-even”, só atingível se forem competitivos. O ideal para eles não é ganhar milhões: é não os perder, na tentativa de ganhar dentro de campo. Os clubes desportivos são e serão sempre cigarras além de serem formigas, porque precisam de trabalhar para o futuro, sim, mas também têm de ser sedutores para serem viáveis. E além de viverem sempre no fio da navalha da gestão, mesmo essa ideia dos planos a longo prazo, que faz da poupança para os dias maus a base da sua existência, é posta em causa por uma realidade que lhes secou os setores de formação, sem competição há ano e meio. Aos que dizem: “se estão aflitos deixem de contratar jogadores no mercado e virem-se para a formação” apetece responder à bruta. “Mas qual formação? A que esteve impedida de jogar durante um ano? O que resta dessa formação?” Ou, se assim o preferirem, de forma mais estratégica: “Que custos enfrentaremos no Serviço Nacional de Saúde a médio e longo prazo pela destruição dos hábitos desportivos de toda uma geração? Haverá matriz de risco para isso?”