O Flamengo, o Tondela e o capitalismo
O capitalismo baseia-se na livre ação dos mercados, mas no desporto a concentração de clubes nas mãos dos mesmos donos falseia a concorrência e subverte o sistema de transferências. Há que legislar.
As notícias acerca da possibilidade da compra do CD Tondela por investidores ligados ao Flamengo não são mais do que o mercado a funcionar e, vistas da perspetiva do clube brasileiro, fazem todo o sentido, pois asseguram uma porta de entrada no futebol europeu para jovens jogadores sem perda das margens de lucro normalmente verificadas entre a primeira e a segunda transferência. Ao mesmo tempo, porém, abrem-nos os olhos para duas realidades nocivas. Primeiro, a um nível global, que a concentração de clubes nas mãos dos mesmos grupos empresariais é um atropelo às regras da concorrência e devia ser impedida, por exemplo, pela criação de um comité de ética na FIFA, cuja aprovação fosse necessária para que sociedades desportivas mudassem de mãos. Depois, a um nível nacional, quando se vê quão barato fica comprar uma equipa da sexta Liga mais competitiva da Europa: no caso do CD Tondela, fala-se em 14 milhões de euros, que é menos do que os nossos grandes já pagam por um jogador.
Não tenho rigorosamente nada contra o funcionamento dos mercados. Sei que o capitalismo favorece este tipo de fenómenos, em que os grandes compram os pequenos, e se falo não é contra o modelo de sociedade, mas a favor da necessidade de regulação em ambientes como o da competição desportiva. Se não se fizer nada, no limite, um dia, um só investidor pode ser dono de todos os clubes em competição e decidir em reunião de administração quem vai ganhar os campeonatos. Tenho a noção de que este é um exemplo ridículo, ainda que em 2018 o RB Leipzig e o RB Salzburgo, ambos detidos pelo grupo Red Bull, já tenham ficado no mesmo grupo da Liga Europa. Imaginem a situação em que, no último dia, uma das equipas defronta a outra, estando já apurada e precisando a outra dos pontos para se qualificar. É ou não uma situação potencialmente perigosa para a verdade desportiva e a integridade da competição?
A realidade, no entanto, tem-nos conduzido cada vez para mais próximo desta possibilidade, com a acumulação de equipas por grupos de investidores, ainda que por enquanto não dentro do mesmo país. Para nos determos apenas em casos diretamente relacionados com Portugal, Gerard Lopez, investidor do Boavista, ex-dono do Lille OSC – que teve de ceder por ser incapaz de satisfazer o serviço da dívida assumida – é atualmente proprietário do Mouscron (Bélgica) e acaba de comprar também o Girondins de Bordéus. Ora aqui temos potenciais conflitos desportivos, pois ainda que o Mouscron tenha descido de divisão, o Bordéus e o Boavista poderão ter de se enfrentar nas provas europeias, mas temos sobretudo inúmeros conflitos de mercado. Porque ser dono de vários clubes dá a um investidor a oportunidade de causar interferência, por exemplo, no mercado de transferências, seja estabelecendo carrosséis de circulação, inflacionando ou deflacionando vendas de jogadores ou até criando mudanças puramente formais, para iludir pagamento de cláusulas. Houve mesmo agentes que criaram clubes-fantasma só para poderem registar jogadores em trânsito e mexer com a divisão dos lucros.
Nos Estados Unidos, pátria do capitalismo por excelência, este tipo de situações não pode verificar-se, por uma razão muito simples: o próprio desporto profissional está privatizado. As Ligas profissionais são associações fechadas, que têm direito de veto sobre os nomes dos donos das suas franchises. Como seria – caso tivesse tido sido criada – a Superliga de Agnelli e Florentino Pérez. No caso do futebol, as coisas são muito diferentes, pois existe a tradição de uma pirâmide competitiva, que permite a qualquer agremiação chegar ao topo na base do mérito desportivo – mesmo que este seja incrementado pela presença de um investidor de enormíssimo calibre. A situação não é cristalina, mas creio que o futebol teria a ganhar caso a FIFA impusesse às federações nacionais a necessidade da criação de uma espécie de registo de proprietários, cujos nomes teriam de ser aprovados pelo tal comité de ética – ainda que depois fique sempre o receio de ver passar coisas como a aprovação pelo Comité de Ética da UEFA da presença das duas equipas da Red Bull nas suas competições, quando isso vai contra os estatutos. Na altura foi definido que, afinal, o grupo de bebidas energéticas não é dono mas apenas principal sponsor do RB Salzburgo.
Outra questão que devia preocupar-nos – ainda que a nível estritamente nacional – é a enorme facilidade com que é possível comprar uma SAD em Portugal. O que me preocupa, mais uma vez, não é que os investidores cheguem, invistam e, se o investimento não der certo, vão embora, deixando as sociedades arruinadas. Isso é a lei da vida no sistema em que vivemos e acontece com qualquer tipo de negócio, de cadeias de supermercados a grupos de hotéis. A questão é que fica estupidamente barato comprar uma equipa da Liga portuguesa, que mal por mal ainda é a sexta Liga mais poderosa da Europa – pelo menos de acordo com o ranking da UEFA. Há três anos, representado pelo espanhol David Belenguer, o Hope Group – também dono do Chongqing Lifan e do Granada CF – pagou seis milhões de euros por 80 por cento da SAD do CD Tondela, que já jogava na I Divisão nacional. É verdade que as perspetivas de receita não são muito elevadas – há pouca gente nos estádios, não há tradição de venda de merchandising, os direitos televisivos não são equitativamente distribuídos – mas o patamar competitivo em que se encontra a Liga portuguesa é terrivelmente atrativo para quem tenha dinheiro e queira investi-lo no futebol profissional.
As notícias referem que o Flamengo estará disposto a pagar 14 milhões de euros pela SAD do CD Tondela – o que, sim, valida o bom trabalho feito por Belenguer, com uma valorização de 133 por cento em menos de três anos, mas ainda é um baixo preço a pagar pela possibilidade de ter uma equipa na Liga Portuguesa. E, acreditem: os próximos tempos vão trazer muito mais novidades nesta área. É agora que é preciso legislar.