O faltismo que mata o futebol em Portugal
Só duas Ligas de topo em todo o Mundo têm mais de 30 faltas por jogo. E o recorde é de Portugal. Somos violentos? Não. Mas somos fiteiros, cobardes e complacentes.
Se é um daqueles leitores que espera pelas notícias acerca dos jogos para poder ir para as redes sociais reclamar das arbitragens, este texto é para si. Mas depois não é, porque aqui não escreverei acerca de penaltis ou de benefícios dados a um clube (sempre o dos outros) e prejuízos a outro (sempre o seu). Falarei de uma coisa muito mais importante: do “faltismo” que está a acabar com o jogo em Portugal. E se é um daqueles leitores que espera pelas notícias acerca dos jogos para poder ir para as redes sociais reclamar das arbitragens, fique a saber de uma coisa: a culpa também é sua.
No final de Dezembro, a GoalPoint fez serviço público, ao divulgar um dado assustador: seis dos oito jogos com mais faltas no futebol europeu vinham da Liga Portuguesa. O dado saltou cá para fora a propósito do Farense-FC Paços de Ferreira, no qual Luís Godinho tinha assinalado 48 infrações, dessa forma batendo o recorde, que estava na posse de Hugo Miguel, graças às 46 vezes que apitara no Boavista-Benfica. Desde essa data, António Nobre já ameaçou os líderes com as 45 faltas que assinalou no Boavista-Santa Clara. E ainda esta semana Manuel Oliveira interrompeu por 43 vezes o Marítimo-Sporting, da Taça de Portugal. Se tivermos em conta que um desafio terá entre 40 e 50 minutos de tempo útil de jogo e que há muitas bolas a sair fora de campo, contribuindo com mais interrupções, é fazer as contas: em média, teremos direito a uns 20 ou 30 segundos de jogo fluído, até que o árbitro apite: “PRIIIIIII!!!!!” “Para tudo!” É impossível jogar assim.
Quem olhar para aquele Top, no qual acima das 44 faltas só surgem jogos da Liga Portuguesa, um “magistral” SD Huesca-SD Eibar, da Liga espanhola, e um não menos “apaixonante” Besiktas-Antalyaspor, da Liga turca, seguramente achará que o nosso futebol é um arraial de porrada permanente, com jogadores muito agressivos, daqueles que olham para o adversário e veem canela até ao pescoço. Mas não é. O que está é cheio de jogadores enganadores, de árbitros pouco corajosos, de comentadores desonestos, de programadores inescrupulosos e de adeptos influenciáveis. Forma-se o cocktail perfeito para acabar com o jogo ou para o transformar numa coisa que ele não é: um permanente Big Brother destinado a detetar erros de arbitragem.
Quem me conhece sabe que vejo futebol de forma absolutamente impassível e que só há uma coisa que me irrita num jogo: é ver um jogador correr atrás da bola, geralmente de frente para a sua linha de fundo ou para uma linha lateral e, sentindo a proximidade do adversário, ser acometido de uma súbita falta de força nas pernas que o leva a deixar-se cair, acabando recompensado com uma falta. Em Portugal isso é o pão nosso de cada dia, sobretudo para equipas que estão em vantagem e a querem preservar ou para jogadores que se metem em situações complicadas e olham para a cumplicidade do apitador como melhor forma de sair delas.
E o problema aqui não é só esses mesmos jogadores depois ficarem baralhados quando jogam num contexto internacional, onde as faltas são mais difíceis de conquistar. Hoje em dia, eles já estão devidamente educados e não fazem isso lá fora. Por alguma razão – e aqui os dados são do portal WhoScored – a Liga portuguesa é a única no Top10 da UEFA que vai com uma média superior a 30 faltas por jogo. Temos 32,1 infrações assinaladas por partida, a contrastar com as 22,6 da Premier League inglesa, com as 25,2 da Bundesliga alemã, as 26,2 da Ligue 1 francesa, as 27,1 da Liga espanhola e as 27,3 da Série A italiana. Para encontrarmos parecido nos campeonatos ali avaliados é preciso ir ao Brasileirão, que viaja a uma média ainda assim inferior à nossa, com 31,6 faltas em média por jogo. E depois vemos os jogos de lá e dizemos que são muito parados…
O problema é exatamente esse. É estarmos a espalhar internacionalmente uma imagem de “fiteiros”, que leva a declarações como a de Guardiola depois do FC Porto-Manchester City. É estarmos a assistir à degradação do futebol enquanto espetáculo, na inversa proporção em que estamos a promover a defesa de interesses particulares, afastando sponsors e televisões estrangeiras, logo, receita. Pedro Proença, ele próprio um antigo árbitro, há-de perceber que esta é uma questão fundamental no futuro imediato do futebol português e que é preciso quebrar a corrente. E cabe-lhe a ele e à Liga que dirige fazer o que pode nesse sentido. Será pouco, mas ainda assim significativo.
Não vai ser certamente a direção da Liga a dizer aos jogadores para deixarem de simular. Não vai ser certamente a direção da Liga a dizer aos programadores televisivos para deixarem cair os programas insanos com que preenchem serões inteiros, programas sujeitos à ditadura do “frame” e cheios de discussões acerca da intensidade, entre comentadores que só veem para um lado (o da cor deles). Esses programas, se servem para alguma coisa, é para influenciar os adeptos a entrar nessa lógica de pensamento parcial, para condicionar os árbitros e para os levar a apitar ainda mais (bem como o VAR a estabelecer recordes mundiais de intervenção), com receio do escrutínio mediático a que serão sujeitos se deixarem escapar alguma coisa. O que a direção da Liga pode fazer é explicar isto aos árbitros, premiar os que não estragam o jogo e punir os que se deixam cair neste redemoinho destruidor. E para isso, ontem já era tarde.