O fair-play financeiro no corredor da morte
A anulação do castigo ao Manchester City é uma derrota que deve colocar a UEFA no trilho certo. Porque não é do dinheiro que o futebol precisa de ser protegido. O problema é a sombra por onde se move.
A UEFA diz que não, mas a verdade é que a anulação, pelo Tribunal Arbitral do Desporto, do castigo de dois anos imposto ao Manchester City por violação das regras, foi uma sentença de morte para o Fair Play Financeiro. Diferente do efeito que a sentença Bosman teve no mercado de transferências, há 25 anos, esta decisão não extingue o Fair Play Financeiro: só mostra que as regras existentes não servem rigorosamente para nada. Se a sentença-Bosman equivaleu ao fuzilamento sumário do sistema de transferências anterior, a forma como o financiamento mascarado da família real do Abu Dhabi ao Manchester City passa incólume no tribunal superior anuncia a entrada do Fair Play Financeiro numa espécie de corredor da morte do qual já não escapará – só não se sabe quando cai inerte. A partir daqui, o sistema destinado a “proteger” o futebol do dinheiro arrasta-se, naquele fato laranja que já todos vimos nos filmes americanos, enquanto à sua volta todos gritam “Dead Man Walking!”. E o que devia inquietar-nos desde já é o que vem aí a seguir.
É importante que percebam que o sistema de Fair Play Financeiro desenhado na era de Michel Platini, não é um portento de justiça. Tem coisas boas, como o facto de colocar um travão ao endividamento dos clubes, uma vez que limita os orçamentos à respetiva capacidade de gerar receita. Mas também tem coisas más, como o facto de impedir o acesso ao Monte Olimpo de qualquer clube que não esteja já lá: é impossível entrar de forma consolidada no clube restrito dos que lutam pela Champions sem um plano de investimentos que viva com o risco e com a ideia de vir a obter receitas no futuro. É essa a realidade do capitalismo e o futebol, vivendo na mesma sociedade que todos nós, não consegue escapar dela. O FPF não protege o futebol do dinheiro, como anunciava a via “socialista”: limita-se a estagnar o panorama, a consolidar os privilégios do dinheiro antigo, dos “velhos ricos”, face à eclosão do dinheiro novo, dos “novos ricos”. E não há nada que me diga que o dinheiro alemão do Bayern, o dinheiro norte-americano do Liverpool FC, o dinheiro espanhol do Real Madrid ou o dinheiro italiano da Juventus sejam melhores ou mais sérios que o dinheiro árabe do Manchester City e do Paris Saint Germain, por exemplo.
O futebol não tem de ser protegido do dinheiro. O que tem é de garantir que os canais que ele percorre são saudáveis. Se há coisa que os sucessivos falhanços de Manchester City e Paris Saint Germain na Champions nos têm vindo a mostrar é que o dinheiro não garante troféus – para os ganhar é preciso ter pedigree, que leva algum tempo a adquirir. O que esteve em causa na anulação do castigo ao City foi simplesmente uma questão de prescrição e o facto de os três juízes-árbitros não se sentirem confortáveis para garantir e assinar por baixo que os financiamentos do Abu Dhabi, sob a forma de patrocínio, eram doping financeiro, isto é, que estavam a ser inflacionados para depois permitirem que a coluna dos gastos subisse também. A qualquer um de nós, que não tenha o ónus da decisão em cima dos ombros, isso parece claro, como parece ainda mais claro que o mesmo faz o Qatar com o Paris Saint-Germain. Ainda assim, esse é dinheiro que vem para o futebol e que permite que estes dois clubes invistam sem recorrer a expedientes muito mais perigosos.
Não é líquido que tenham sido as regras do Fair Play Financeiro a empurrar a generalidade dos clubes para os fundos de capital de risco – que entretanto floresceram na área – e a financiar-se através de transferências claramente inflacionadas. A aritmética é simples: se o que as regras querem é que a coluna dos gastos equivalha à das receitas, se não há doping financeiro sob a forma de sponsorização, nada nos diz que não seja possível contorná-las inflacionando de forma artificiosa operações como transferências de jogadores, com o efeito pernicioso de – aí, sim – deixar o futebol vulnerável ao dinheiro que não é do futebol. Porque ao contrário do dinheiro do Abu Dhabi ou do Catar, esse é dinheiro que vem mas depois vai embora a dobrar.
A ver se nos entendemos. A grande batalha do futebol nos próximos anos não vai ser travada contra o dinheiro. A esse não há como fugir – além de que já vimos que o desporto tem as suas dinâmicas próprias e não permite que o dinheiro ganhe campeonatos por si só. A grande batalha que o futebol vai travar nos próximos anos é contra as sombras nas quais o dinheiro se move. Não tenho pretensões de saber se o dinheiro que o Sheikh Mansour investe no futebol foi obtido de forma limpa – e isto também é válido para Abramovich, John Henry ou qualquer outro investidor que se vire para o jogo. Mas temos todos a obrigação de garantir que, assim que esse dinheiro entra no futebol, sabemos como ele se mexe, a quem pertence, para onde vai e o que compra. Esse é o desafio dos próximos tempos, os tempos em que o Fair Play Financeiro arrasta ruidosamente as correntes pelo corredor da morte.