O facilitismo das contas
Fernando Santos não gostou das contas que jornais e TVs fizeram e alertou para o fator-Hungria. Mas o que preocupa mesmo é o facilitismo que essas contas podem gerar na equipa.
O facto de os jornais e as televisões em Portugal terem cumprido a sua missão de informar, dizendo que a seleção nacional poderia perder por dois golos com a França e ser na mesma apurada para os oitavos-de-final do Europeu, foi mal visto tanto pelo público como pelos responsáveis da seleção nacional. Da parte do público a revolta veio do facto de estarmos a “pensar pequenino”, como se a existência de regras definidas para o caso de acidente aéreo significasse que as companhias estivessem a contar que os seus aviões caíssem. Já da parte dos responsáveis federativos, o incómodo foi expresso noutro sentido – o de não estarmos a contar com a Hungria – mas na verdade o receio havia de ser o de isso poder vir a contaminar os jogadores com uma ideia de facilitismo que não concorre para um bom resultado logo mais à noite.
“Então e a Hungria? Não joga?”, disparou Fernando Santos na conversa com a RTP, que por ter os direitos do jogo de hoje teve ontem acesso exclusivo ao selecionador. Santos pode até acreditar que a Hungria vai ganhar à Alemanha a Munique, seja porque os húngaros empataram com a França ou porque, como ainda ontem me lembraram da FPF, marcaram golos em 12 dos seus últimos 15 jogos. Mas, se bem o leio, aquilo que lhe terá desagradado mais foi o sentimento de descompressão que esta informação pode provocar numa equipa que já com a Alemanha foi mole e que, se acreditar que o trabalho está feito, pode aparecer mais mole ainda contra os franceses. Acontece que, neste caso, estamos a confundir três dimensões da realidade. Uma é a dimensão informativa. Outra é a opinativa. E a terceira a volitiva. Todas elas são legítimas, dependendo do contexto.
O papel do jornalista é informar – e tem mais é de dizer a quem o segue que as contas são estas ou aquelas, independentemente daquilo que os seus seguidores possam depois fazer com essa informação. Uma coisa, estes não podem fazer: é achar que só por lhes estar a ser dito que Portugal pode perder por dois e apurar-se na mesma se está a defender que Portugal deve jogar para perder por poucos. Porque aí entra a dimensão opinativa. E esse é o papel do analista ou do comentador. Ele, sim, poderá dizer que, frente a um adversário muito forte, a melhor estratégia deve ser esta ou aquela. Não acredito, ainda assim, que o plano estratégico de um jogo se defina dessa maneira tão simplista: ninguém joga para empatar ou para perder por poucos, porque mesmo quem joga com muito cuidado defensivo o fará na crença de que pode manter a balizar a zeros e surpreender num ataque rápido ou num contra-ataque, dessa forma ganhando. E, se querem saber a minha opinião, se há jogo que Portugal deve enfrentar com cuidados defensivos é este, contra o campeão do Mundo.
Por fim, há a vontade de cada um. Quase todos queremos o mesmo: que Portugal ganhe. Mas isso é o que eu quero enquanto cidadão português e adepto de futebol. No meu papel tanto de jornalista como de comentador, não tenho vontade. Não posso tê-la. A única coisa que não podem dizer-me é que não devo dar esta ou aquela informação, desde que ela esteja correta, porque ela poderá prejudicar a capacidade analítica dos adeptos ou o foco dos jogadores. Os adeptos são responsáveis pelo que fazem com a informação que lhes é servida. E essa missão – a de manter a equipa focada – não é dos jornalistas, dos comentadores nem sequer dos adeptos, por mais vontade que estes tenham de ver as suas cores ganhar o jogo. Ela cabe, em exclusivo, à equipa técnica da seleção nacional.
Dito isto, hoje há um jogo fundamental, no qual Portugal pode até perder e ser apurado, mas onde, até para que os jogadores acreditem mais no processo e em si próprios, não pode dar a imagem paupérrima que deu contra a Alemanha. O que está aqui em causa não é passar o grupo em primeiro, segundo ou terceiro. Não é sequer levar toda a nação a acreditar nesta equipa e nas suas ideias – os jogos são no estrangeiro, pelo que isso só é relevante para as audiências televisivas. O que está aqui em causa é a equipa seguir em frente confiante de que está a fazer as coisas certas. Em 2016, mesmo sem ganhar – mas também sem perder, ainda que contra adversários mais fracos – a seleção nacional não desacreditou, quanto mais não seja porque não chegara verdadeiramente a acreditar. Cinco anos depois, com dois títulos no bolso – campeão europeu e vencedor da Liga das Nações – Portugal tem de ser capaz de falar mais grosso com os adversários. Tem outras responsabilidades. E essas não se defendem por lembrar que a Hungria pode até ganhar à Alemanha em Munique. Defendem-se em campo, com argumentos que este equipa ainda não apresentou.