Os donos e os clientes do futebol
Os ingleses não recuaram na Superliga porque os clubes fossem dos adeptos. Não são. Recuaram porque os donos conhecem a velha máxima segundo a qual o cliente tem sempre razão.
Há limites para a indignação popular e eles estiveram bem à vista em Old Trafford, onde uma manifestação de adeptos contra a família Glazer, proprietária do Manchester United, levou ao cancelamento do importante derby com o Liverpool FC. Era menos mau se eu agora viesse dizer aqui que a vontade do povo é soberana e incontrolável e que portanto os americanos têm de se por a andar, que foi mais o menos o que disse Gary Neville, do alto da dupla posição de ex-estrela do clube e atual comentador da Sky Sports, e que por uma vez se viu do lado certo da história. Mas não é isso que penso. A vontade do povo é soberana, mas não pode ser incontrolável, porque é extremamente influenciável e, por isso mesmo, tem de ter os momentos certos para se expressar. Esse é um dos maiores problemas do modelo inglês de propriedade dos clubes.
Não vou com isto dizer que em Portugal não tenhamos questões idênticas, apesar de termos um modelo diferente. Nas últimas décadas não terá passado pela cabeça de nenhum adepto de FC Porto ou Benfica levar a contestação aos dirigentes para lá do ato eleitoral – e mesmo aí têm de pensar muito… – mas, nem de propósito, este fim-de-semana ficou marcado por manifestações de euforia já um pouco descontrolada de adeptos do Sporting, à chegada da equipa a Alvalade, forçando uma presença excessiva da polícia. Rúben Amorim usou (e bem) o tema para valorizar os seus jogadores, dizendo que há poucos meses havia manifestações contra e que elas agora são a favor, mas tudo isto nos leva a pensar na volubilidade das massas e no que as leva a manifestar-se. Os que estiveram no sábado em Alvalade eram os mesmos que lá foram exigir a demissão de toda a gente há cerca de um ano? E se as coisas correrem mal à equipa de Amorim nas quatro jornadas que faltam até ao fim da Liga voltarão lá com a ideia anterior?
A vida de um clube em Portugal depende de atos eleitorais e de estatutos, que podem levar – ou não – à destituição de órgãos sociais em assembleias-gerais. É por isso que dizemos que os clubes são dos sócios. Não é porque os sócios, de repente, se estão aborrecidos com uma contratação, uma venda, o rendimento de um jogador ou as decisões de um treinador possam entrar pelo campo e impedir a realização de um jogo. Ora a questão é que em Inglaterra os clubes não são dos sócios. São dos donos, que fazem com eles o que muito bem entenderem. Diz o provérbio popular que não se pode ter o sol na eira e a chuva no nabal e isso ilustra bem os prós e os contras do modelo inglês, não só de clubes cotados na bolsa como de alienação da totalidade do capital a proprietários. Sabe muito bem quando aparecem milhões para contratações, inseridas em planos de negócios inflacionados exponencialmente por toda a estrutura empresarial, mas depois tudo isso vem com fatura. É que manda quem paga. E quem está mal que se mude, como tentaram fazer os indignados que, à chegada dos norte-americanos, fundaram um novo clube, o FC United of Manchester. Este até chegou a gerar buzz mediático mas, em 16 anos, só conseguiu subir três escalões, da nona para a sexta divisão inglesa, onde continua perdido.
Os proprietários dos clubes ingleses fizeram asneira, mas fizeram a asneira que o sentido do mercado lhes indicava. E reconheceram-no, recuando após manifestações de adeptos, que não queriam a Superliga europeia – e não deixa de ser curioso que onde os clubes continuam a ser dos sócios, que é em Espanha, ninguém tenha usado o direito à indignação. Os donos dos clubes podiam ter mantido a ideia. Aliás, por mais ridículo que isso possa parecer, se os Glazer quisessem levar o Manchester United jogar a MLS e a Liga norte-americana aceitasse o clube, podiam fazê-lo. O mesmo podem dizer Stanley Kroenke, dono do Arsenal, ou John W. Henry, proprietário do Liverpool FC. Ou o russo Abramovich, dono do Chelsea. Ou o emir do Abu Dhabi, que manda no Manchester City. Todos os clubes ingleses funcionam assim, como já expliquei aqui. E as coisas não mudam se em vez do americano Kroenke aparecer o sueco Daniel Ek, dono do Spotify, ou o milionário nigeriano Aliko Dangote, que já mostraram interesse na compra do Arsenal. Porque ninguém faz um investimento deste calibre para depois se alhear da sua gestão.
O Manchester United, por exemplo, vale neste momento cerca de 3,5 mil milhões de euros em bolsa e dá à família Glazer quase 100 milhões de euros de lucro anual. Os adeptos não perdoaram ainda aos proprietários a forma como se deu a compra do clube: a dívida contraída para comprar passou para o clube e os donos limitam-se a colher dividendos. Mas se os proprietários recuaram na questão da Superliga não terá sido tanto por respeito à posição dos adeptos, mas fundamentalmente por terem pesado prós e contras que vinham da oposição da UEFA, do Governo britânico e, sim, também, da possibilidade de terem de enfrentar multidões furiosas, que provavelmente iam ser coisas más para o negócio. Porque – e isto deve servir de mote para quem, em Portugal, defende a alienação da maioria do capital das SAD a investidores – os donos são eles. Os adeptos, ali, são clientes. E são clientes sem capacidade para comprar o negócio.