O desespero do Boavista
O Boavista luta por uma golfada de ar como um homem enterrado vivo. E arranha a parte de dentro do caixão de forma desesperada, sabendo que é provavelmente tarde demais para agarrar a salvação.

Palavras: 1295. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu Telegram).
O Boavista, tal como a Académica, o Vitória FC, o Belenenses, o Marítimo e em certa medida até o Leixões, o Varzim, o Beira Mar, a CUF ou o Barreirense, são clubes com os quais cresci e com os quais estabeleci uma ligação sentimental, a par da que tenho com os grandes, com o SC Braga ou com o Vitória SC. Foram anos e anos a ver jogadores com aquelas camisolas a saltarem das carteiras de cromos, o que me leva a sentir a falta das cores deles no desfile da Liga. Nalgum momento, já foram todos borda fora, incluindo o Boavista, que entretanto voltou e até ganhou esta semana (1-0 ao Santa Clara), deixando emocionado o seu treinador, que verteu uma lágrima ante a perspetiva de poder reentrar na luta para se manter. Mas temos de ter a noção de que os axadrezados andam a fazer tudo errado há anos, que não é seguro que estejam agora a fazer as coisas certas e que se no final acabarem por conseguir evitar a despromoção o feito será um verdadeiro milagre, obtido por um grupo reunido à pressa e sem tempo sequer para se consolidar.
A vitória de ontem, em grande parte conseguida porque ao Santa Clara já foi tirado o cimento que unia a equipa sob a forma de motivação – a época dos açorianos não está feita, que pode haver uma vaga nas pré-eliminatórias da Liga Conferência em disputa, mas é quase como se estivesse, porque esse aparentemente nem é um objetivo... – deixou as “camisolas esquisitas” a um ponto do Farense e a sete do Estrela, que também tem a vida difícil neste momento. A salvação, personificada no 15º lugar ocupado esta semana pelo Gil Vicente, está aos mesmos sete pontos de distância e, para a abraçar, Lito Vidigal, o treinador chamado de emergência para ocupar a vaga deixada pelo italiano Cristiano Bacci, que se demitiu por exaustão, fixou os olhos em cinco vitórias nas últimas onze jornadas. Uma já está. Se não conseguir as outras quatro, porém, a verdade é que ninguém pode levar-lhe a mal: o Boavista começou a época como maior candidato à 18ª e última posição, a jogar com miúdos que tinham andado cedidos e que nem se tinham afirmado nos escalões secundários. Os argumentos que apresentei na previsão de tabela final que fiz antes do início da prova (e que pode consultar aqui) levaram-me a dar a despromoção do Boavista quase como certa. E era para aí que a equipa se dirigia, apesar do bom trabalho feito por Bacci.
Findo Janeiro sem novidades, o que levou à quinta janela de transferências seguida sem a possibilidade de contratar jogadores, Bacci desistiu de lutar. O clube substituiu os dirigentes em eleições, mas nem daí nem do investidor da SAD, o hispano-luxemburguês Gérard López, vieram também notícias encorajadoras. E parecia mesmo que estávamos perante o último estertor de um clube que há 24 anos foi campeão nacional. O levantamento do impedimento da FIFA veio só depois do fecho de mercado, o que abriu ao Boavista uma frincha da porta dos fundos. Não era como entrar pela porta principal, como o clube fazia nos tempos da família Loureiro, em que representava para o ecossistema do futebol português até mais do que vale hoje o SC Braga de Salvador – também andou pela Champions e vendia caro aos grandes, mas até ganhou a Liga. Sem ninguém para vender a não ser em mercados alternativos, a gente que, sabendo do desespero por dinheiro fresco, limitava os gastos, o Boavista foi autorizado a inscrever jogadores desde que estivessem desempregados. E atenção, tinham de estar desempregados desde a anterior janela de mercado, regra feita para impedir espertezas saloias como seria, por exemplo, o despedimento de um jogador só para ele poder depois ser inscrito como desempregado. E o Boavista fez o seu mercado de Fevereiro, uma originalidade que eu nunca tinha visto no futebol de alto rendimento – o que já de si serve para explicar as razões pelas quais a coisa deve ser encarada com reservas.
Na vitória contra o Santa Clara, liderados por Lito Vidigal, esse ícone máximo dos treinadores defensivos no futebol português, estiveram vários homens resgatados ao centro de emprego. Vaclik, o guarda-redes que brilhara na Luz na ronda anterior, sendo ainda assim insuficiente para evitar a derrota, fazia o segundo jogo depois de oito meses de paragem – já não jogava desde Maio, no Albacete CF. O central Lystsov, também a fazer a segunda partida, estava inativo desde Abril, quando alinhou pela última vez na UD Leiria. Outro dos centrais, Sidoine Fogning, já ia na terceira partida de xadrez, tudo depois de ter fechado atividade em Maio, no SC Coimbrões. Van Ginkel, que chegou a ser jogador do Chelsea, do PSV Eindhoven e do Milan, vai na terceira apresentação, depois de ter saído do Vitesse, igualmente em Maio. Koné fez a segunda partida, depois de deixar o DAC, da Eslováquia, também em Maio. Do banco ainda saltou o central Steven Vitória, campeão pelo Benfica em 2014, mas no terceiro jogo depois de ter descido de divisão com o GD Chaves, em Maio. Com ele foi o ex-leão Diaby, na segunda partida depois de ter deixado os turcos do Pendikspor, em Maio. E houve ainda espaço para a estreia do americano Ariyibi, inativo desde que saiu do Keçiorenguçu, da segunda divisão turca, em Abril. E há mais gente em lista de espera, como o serra-leonês Kakay ou o francês Kurzawa, que já jogou e entretanto se lesionou. Alguns destes novos jogadores até terão tido o cuidado de ir treinando, mantendo a forma, outros não, mas nem é isso que está em causa. O que o Boavista está a tentar fazer é algo de absolutamente inédito na história do futebol de alto rendimento.
Claro que formar uma equipa não é só ir ao Transfermarkt e fazer uma pesquisa por jogadores sem contrato. Não é sequer somar a essa busca o visionamento de vídeos disponíveis para todos eles em plataformas de scouting e perceber que valências eles podem acrescentar. Há ali uma parte significativa que é absolutamente imprevisível. Como é que eles vão reagir à retoma da atividade? Quanto tempo levarão a atingir níveis físicos que sejam minimamente aceitáveis? E depois de os atingirem, quando superarem o entusiasmo inicial e a gratidão de lhes ter sido permitido voltar a trabalhar (a fase em que estará o grupo neste momento) e perceberem aquilo por que de facto estão a lutar e as possibilidades de terem sucesso, como é que vão reagir? É possível, talvez, fazer isto com um jogador. Se der, deu, se não der, paciência. Mas montar uma equipa inteira em torno deste expediente já me parece um risco com reduzidas possibilidades de êxito real. Lito Vidigal terá uma tarefa hercúlea para fazer do Boavista uma equipa – essa é a primeira missão dele. E depois ainda outra, para manter essa equipa junta atrás de um objetivo tão pouco gratificante como a fuga ao último lugar da Liga portuguesa. Se conseguir, merece uma estátua ao lado da da pantera imponente que marca a entrada do belo Estádio do Bessa. E essa será uma altura tão boa como qualquer outra para chamarmos à razão todos os responsáveis pela situação atual do Boavista. A começar por López, que até por já ter sido dono do Lille OSC e de ainda ter nas mãos um emblema tão histórico como o Girondins de Bordéus, devia saber que para ser investidor é preciso investir.
Os jogadores, quando foram contratados, sabiam qual o objectivo até ao final da época. Acredito que, se o conseguirem, valerá tanto para eles como ganhar um campeonato. Motivados estão certamente, com capacidade é que duvido mais. Mas alguns são muito cotados e experientes. É muito difícil, mas podwn entrar na história dos campeonatos em Portugal.