O desequilíbrio da necessidade
Os nossos grandes assentam o modelo de negócio nas mais-valias geradas por transferências e tornaram-se reféns de quem as faz. Porque é que persistem neste desequilíbrio marcado pela necessidade?
O modelo de negócio assente nas mais-valias geradas pelas transferências, a que recorrem os grandes clubes portugueses, tem vários problemas graves além daquele a que já aludi aqui na segunda-feira. Se por um lado o mercado internacional reduziu para cerca de metade os valores em circulação, fruto da incerteza gerada pela pandemia, por outro, se toda a gente sabe que um clube precisa de vender para subsistir, é normal que esse clube raramente veja atendidas as suas pretensões, por mais alto que fale o macho-alfa que tem como líder. É aqui que entram as parcerias com os empresários que garantem vendas, mas ao mesmo tempo exigem compras e tornam os nossos maiores clubes reféns de operações de mercado. Isto faz sentido? Não. Mas toda a gente vai dar a este desequilíbrio da necessidade. E ninguém pode deixar de enfiar a carapuça, dos dirigentes aos jogadores.
O futebol português tem um histórico deficitário e ganhou vícios de grandeza que são difíceis de renegar. Durante os anos 90 era a Olivedesportos que o financiava, a troco de contratos de cedência de direitos televisivos e de publicidade estática que as transmissões tornavam visível. Não tínhamos peso no mercado internacional de transferências e, quase sempre que faltava o dinheiro num clube, aparecia Joaquim Oliveira com mais um adiantamento. Esse era um negócio finito, porém. Começavam a escassear no horizonte os anos para prolongar contratos – ainda estamos à espera que acabem contratos para podermos implementar a venda centralizada de direitos – e, por outro lado, se a globalização já permitia que o Mundo se fixasse nos nossos jovens talentos, por cá apareceram agentes com capacidade para se moverem no mercado de transferências e para os colocar em grandes clubes internacionais. Manuel Barbosa, José Veiga e, mais recentemente, Jorge Mendes mudaram este paradigma e, ganhando sempre muito com isso, asseguraram que os nossos clubes continuavam com a cabeça fora de água, mesmo sendo deficitários na gestão corrente.
O relacionamento dos nossos clubes com estes agentes e com fundos de investimento, como a Doyen, por exemplo, é sempre marcado pelo desequilíbrio da necessidade – os nossos presidentes são como os viciados que vendem as joias da família por mais uma dose… –, que deixa os detentores do capital na invejável posição de determinar quem ajudam muito, quem ajudam pouco e quem não ajudam nada. Todos os anos, antes de começar a Liga portuguesa, por diversão, faço a mim próprio a seguinte pergunta: quem é que Jorge Mendes gostaria de ver coroado campeão? Porque, sendo indiscutivelmente o mais poderoso dos agentes portugueses e um dos mais influentes no mercado mundial, Mendes está em posição de determinar quem vai ser financiado e quem o não é. E a questão é que não o faz por pirraça ou por preferência clubística. Fá-lo sempre por estratégia, já que também a ele lhe interessa fazer os melhores negócios possíveis e não pensar apenas no imediato, mas sempre a dois, três, quatro, cinco anos.
O mercado mundial de transferências está neste momento de tal forma desregulado que não interessam nada as perguntas que se faziam há uns anos. Questões como “quem é o agente do jogador?” perderam relevância, porque além do agente do jogador, num negócio, entram o representante do clube vendedor e o representante do clube comprador. Uma balbúrdia que é imperioso regular, até porque muitas vezes há quem duplique tarefas e represente ao mesmo tempo quem compra e quem vende. E não o faz para ir à procura da comissão, que isso é coisa de peixe pequeno. O peixe graúdo também negoceia comissões, sim, mas negoceia sobretudo uma coisa que tem um valor inquestionavelmente superior: influência. Como reféns que se prezam, os dirigentes dos nossos clubes têm vindo a perder influência e decidem cada vez menos, mas já nem estranham, porque dos que por lá andam agora só Pinto da Costa chegou a saber como era antigamente, quando os clubes decidiam mesmo se compravam ou vendiam. Hoje gerem, como é evidente, mas fazem-no dentro dos limites que lhes vão sendo impostos pela conjuntura. E criam e espalham pela comunicação social as narrativas que ajudam a tornar a realidade uma pílula mais fácil de engolir por adeptos sobretudo sequiosos de títulos.
A consciencialização desta realidade levará muita gente a perguntar porquê. Porque é que os clubes não dão o grito do Ipiranga e não se tornam independentes? Se há a noção de que não há almoços grátis, de que as vendas inflacionadas têm sempre correspondência em compras também elas inflacionadas, eternizando o ciclo da dependência e impossibilitando a gestão corrente equilibrada, porque é que não há quem quebre a corrente? Tenho, à partida, três respostas para essa pergunta. Uma tem a ver com a ilusão: todos temos sempre a tentação de acreditar que a miúda mais gira do baile de finalistas só sorri para nós e que é connosco que vai casar e constituir família. Outra tem a ver com os jogadores, que também gostam de mudança e muitas vezes a forçam, impedindo os clubes de consolidar as políticas centradas na formação. E a terceira com resultados imediatos: a verdade é que, mesmo assim, os nossos clubes têm sido muito mais competitivos internacionalmente nos últimos anos. Resta perceber se o são apesar da conjuntura ou graças à conjuntura.