O Chelsea, Abramovich e o dinheiro sujo
O Chelsea vai viver um final de época penoso, porque o governo britânico mandou o futebol rejeitar o dinheiro de Abramovich. Mas nem devia tê-lo aceite nem o russo é o único mal na fotografia.
O congelamento de todos os bens de Roman Abramovich por parte do governo britânico, que leva o Chelsea a entrar numa espécie de túnel sem saídas laterais, no qual tem de lutar pela sobrevivência imediata a cada passo até conseguir ver a luz do outro lado, é para muitos uma prova fumegante de que tiveram razão antes do tempo e pode até ser o empurrão de que o futebol precisa para entender que tem de ser mais rigoroso no escrutínio dos que convida a tomar chá nos seus salões. Até antes de resolver o problema do Chelsea, o que o futebol tem de pensar já é no que vai fazer se um dia se provar o financiamento do Qatar a grupos terroristas, se descobrir que até tem escrúpulos e se envergonhar de acolher um regime que não respeita alguns dos mais básicos direitos humanos e também patrocina uma guerra em solo estrangeiro, como o da Arábia Saudita, ou se de repente Xi Jinping dormir mal uma noite e resolver invadir qualquer país vizinho da China. E, sobretudo, o que tem de fazer é imaginar uma forma de contrariar o oportunismo dos culpados da situação: os políticos, que olham para as coisas conforme manda a agenda do dia.
Roman Abramovich é hoje o mesmo homem a quem Cesar Azpilicueta entregou em mãos a Taça dos Campeões Europeus, no final da época passada, no Dragão, para que ele pudesse fazer-se fotografar – a ele e à família – com o mais prestigiado troféu do futebol europeu nas mãos. Nesse dia foi capa dos jornais, como já tinha sido quando o seu resgate do Chelsea, no início do século, permitira ao clube voltar a ser campeão inglês, 50 anos depois. Não foi ele que invadiu a Ucrânia. Quem o fez foi um seu aliado, Vladimir Putin, fruto do mesmo sistema corrupto que nasceu do desmembramento da União Soviética. Abramovich enriqueceu brutalmente de forma imoral, aproveitando as benesses dadas a um conjunto de oligarcas nas privatizações dos infindáveis recursos naturais à disposição na Rússia em troca de apoio na eternização do poder emergente do caos em que se estava a transformar o país. Mas nem é o único desse lote que marca presença no futebol europeu – como tenho vindo a mostrar na série de artigos acerca dos Donos da Bola (1) – nem os oligarcas russos são, assim de repente, tudo o que está mal no Mundo. Por mais que nos indignemos com a invasão da Ucrânia, com o sofrimento de civis devido à tentativa de obliteração de uma nação soberana, por mais que isso monopolize a agenda mediática, há muito mais dinheiro sujo a passear pelo Mundo – e algum vem parar ao futebol.
Este é o momento em que os saudosistas de que falava há dias vêm lembrar que bom, mesmo, era o futebol de antigamente, em que o dinheiro tinha menos peso – e no qual os jogadores, por exemplo, não eram, por isso mesmo, devidamente recompensados. O Mundo mudou e já não volta para trás – além de que muitos dos que pedem isso são depois os mesmos que inundam a caixa de comentários do post de Facebook com o F80 acerca de Peyroteo, para menorizar a carreira deste goleador dos anos 30 e 40, dizendo que no tempo dele o futebol tinha pedras em vez de balizas e uma bexiga de boi a fazer de bola. Mas o Mundo já não vai voltar para trás: nem precisa. O problema não é haver dinheiro no futebol. O problema é ele não ser devidamente escrutinado e não ser avaliada a sua proveniência ou, se quiserem, até o caráter ou a solidez de quem quer investir. E, por muito jeito que vos dê culpar aqui a gente do futebol, a ganância da FIFA e da UEFA, que aceitaram patrocínios da Gazprom e fizeram um Mundial na Rússia, ou a falta de escrúpulos de decisores de clubes – e dos adeptos –, que só olham para o que podem fazer com as injeções de capital e muitas vezes não se preocupam com a sua proveniência ou até se essas mesmas injeções não são simplesmente operações de lavagem de dinheiro sujo, o futebol não é o principal culpado.
Quando os clubes da Premier League falaram em vetar a entrada do fundo soberano do reino da Arábia Saudita (o FSI) no Newcastle United, foram os tribunais que decidiram que, bem vistas coisas, aquele fundo tinha uma personalidade jurídica diferente da de Mohammad bin Salman, o príncipe herdeiro, que é responsável pela sua gestão. Ao mesmo tempo, especula-se que o próprio governo de Boris Johnson terá sido apertado pelos sauditas, que lhe terão dito que se não podiam comprar um clube então também não podiam comprar tudo o resto de que se abastecem no Reino Unido, ajudando a manter a economia britânica a rolar. É disso exemplo o armamento que utilizam a patrocinar na guerra no Iémen, que segundo as Nações Unidas estará a atingir um total de 400 mil mortos. O facto de isso depois não abrir os nossos Telejornais não significa que o dinheiro saudita seja melhor que o de Abramovich. Significa simplesmente que o futebol não dedica ao escrutínio do investimento a atenção que devia e, sobretudo, que as pressões sobre ele exercidas pelos políticos dificultam ainda mais qualquer tipo de escrutínio. O Chelsea, aqui, basicamente está a pagar por erros próprios, mas também a ser feito exemplo de uma guerra que tem muito mais culpados.
(1) – A série Donos da Bola já tem sete artigos publicados, acerca de quem manda nos clubes em Inglaterra, Itália, França, Alemanha, Espanha, Brasil e Rússia. A cada semana, sai um novo artigo com um novo país.
O futebol é que vai escrutinar de onde vem o dinheiro? Então já não existem instâncias para esse escrutínio?