O campeonato e a dúvida tolerável
O empate no FC Porto-Sporting aconselha a que se mantenha a dúvida no campeonato. No Sporting exercem-na. No FC Porto recusam-na. E no Benfica até a estimulam excessivamente.
A polémica no final do FC Porto-Sporting foi um espelho do jogo: fraquinha. Nem o Sporting jogou o suficiente para sair do Dragão com requintes de campeão antecipado, nem o FC Porto lá exibiu uma superioridade que justificasse as manifestações de despeito de jogadores e treinadores no final da partida. O jogo foi demasiado marcado pelos dez pontos de diferença que havia – e que continua a haver – entre as duas equipas: o líder escudou-se neles para não precisar de jogar mais, o campeão esqueceu-se de que eles existiam em campo e, depois, nas justificações apresentadas para o resultado frustrante. Mas eles estão lá, bem à vista de quem quiser ver, na tabela. E ao contrário do que aqueles 90 minutos podem fazer crer a quem se predispõe a acreditar nisso, não são fruto do acaso, da sorte ou da boa ou má vontade dos rivais.
O FC Porto esteve mais perto de ganhar o jogo. Teve mais bola, mais ataques, mais ocasiões de golo… Mas não fez uma grande exibição e, por muito que agora procure conforto nessa ideia, não foi porque o adversário não quis jogar: foi porque tem as suas próprias limitações. O Sporting fez aquilo que fazem os líderes nas segundas voltas dos campeonatos – com menos poder ofensivo do que alguns, é verdade, mas com uma almofada de vantagem mais ampla do que é habitual e nem por isso com total ausência de vontade de jogar ou mais antijogo, que não vi isso em campo. Aliás, nem seria preciso ir buscar o histórico de Sérgio Oliveira em jogos com os leões para se concluir que não faz sentido a tentativa de apoucar o rival com declarações acerca do que significa para ele empatar no campo do FC Porto – “é como ganhar a Champions”, disse o médio, cujo primeiro clássico até foi uma derrota por 3-1 com os leões no Dragão, em Abril de 2016. Bastaria olhar para o que ambos fizeram contra “iguais” esta época. Em oito desafios perante Sporting, Benfica e SC Braga, o FC Porto só ganhou dois: o jogo de abertura da Liga, contra os bracarenses, no Dragão, e a Supertaça, com o Benfica. Em contrapartida, em seis jogos nas mesmas condições, o Sporting não só ainda não perdeu como já ganhou aos três: ao SC Braga duas vezes, ao Benfica na única ocasião que teve para tal e ao FC Porto na Taça da Liga.
O resultado de um jogo pode ser fruto de casualidade. Mas quando uma coisa acontece com tanta frequência já não é acaso: é tendência. O FC Porto pode até tentar convencer-se de que não ganhou o jogo de sábado porque o árbitro e o VAR tinham funções trocadas ou porque o adversário não usou a estratégia que mais lhe convinha a ele enquanto perseguidor, mas isso só servirá para iludir o maior problema. É da condição humana que para melhorarmos temos de aceitar as nossas carências. Mesmo dez pontos à frente, foi isso que fez Rúben Amorim – e até pode ter sido “show-off” ou um falar de boca cheia após um resultado que lhe assentou bem, mas foi o que aconteceu… – quando reconheceu que a sua equipa não esteve tão bem como devia do ponto de vista ofensivo. Apesar de ter tido a sua oportunidade de matar o adversário no contra-ataque de Matheus Nunes, o que se viu foi um Sporting mais interessado em baixar o ritmo de jogo, de facto. Mas é muito por aí, pela aceitação das suas próprias limitações, que se explica, também, a diferença entre um campeão demasiado cheio de si mesmo e um desafiante que, com uma vantagem tão confortável, continua a colocar o jogo seguinte como limite da ambição. Não é treta nem superstição: Rúben Amorim não assume candidaturas, porque precisa de manter na equipa uma dose assinalável mas nunca excessiva de dúvida.
O clássico de sábado podia ter dado uma demonstração tal de superioridade portista que, associada a uma vitória azul-e-branca, elevasse esses níveis de dúvida para lá do tolerável. Podia ter dado uma vitória leonina que acabasse com essa dúvida metódica dentro do plantel verde-e-branco, mas se assim fosse isso também seria irrelevante, pois em vez de dez pontos estaríamos a falar de 13. Deu empate, o que quer dizer que continuamos a ter campeonato. E que o Sporting mantém os seus níveis de dúvida na zona não-tóxica. E que ao FC Porto já convinha começar a despertar e a duvidar um pouco do seu estatuto, se quer reentrar na luta pelo título. Porque isso, mais do que declarações de soberba, é que faz parte do DNA daquela casa.
PS – Luís Filipe Vieira, presidente do Benfica recentemente legitimado, como ele próprio fez questão de repetir reiteradamente na entrevista ao canal de televisão do clube, por “dois em cada três sócios”, associou o surto de Covid-19 que afetou a equipa profissional de futebol com o facto de esta se equipar nos balneários dos estádios dos adversários. Fê-lo ao anunciar que, na próxima época, se não houver imunidade de grupo, o Benfica vai chegar equipado aos estádios e assim de lá sairá, indo tomar banho ao hotel. A afirmação pode até já ter sido papagueada “ad nauseam” por vários irresponsáveis em programas de lixo televisivo; pode até ter passado sem a pergunta que se impunha por parte do jornalista que fazia a entrevista – “está a dizer que suspeita que o surto teve início num balneário de um estádio? E qual estádio?” –, mas é demasiado grave para passar sem esclarecimentos. O Benfica suspeita do FC Porto? Suspeita do Estrela? Já fez queixa às autoridades ou esta insinuação foi só a forma de bater e esconder a mão, de modo a alimentar a discórdia e desviar as atenções dos contestatários em torno do “inimigo externo”? É que também há dúvidas que, por não serem saudáveis, se tornam intoleráveis desde o primeiro momento.