O braço armado
Rüdiger foi castigado com seis jogos pela expulsão na final da Taça do Rei e até já se tinha arrependido do ato. O pior é que não há sinal de que o Real Madrid vá dar um passo atrás na sua origem.

Palavras: 1421. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram).
Antonio Rüdiger ficou ontem a saber que apanhou seis jogos de castigo pela expulsão na final da Taça do Rei de Espanha, entre o Real Madrid e o FC Barcelona. Os conspiracionistas já vieram comentar que foi um castigo “à medida”, porque o jogador foi também ontem sujeito a uma intervenção cirúrgica que o afastará dos relvados durante umas seis semanas e não iria poder jogar de qualquer modo, mas essa parte não a subscrevo, que não acredito em castigos demasiado pesados a não ser que haja dano físico intencionalmente provocado no opositor – e, apesar da gravidade do ato que deu origem à expulsão, não foi esse o caso. Claro que tudo aquilo que acabo de escrever é suscetível de motivar em quem lê reações de uma oposição extrema, desde a defesa dos tais castigos demasiado pesados feita por alguns à justificação para a atitude do jogador, que, ao atirar gelo contra o árbitro, se teria limitado, para outros, a expressar a justa indignação de um clube sistematicamente prejudicado. Faço os possíveis por entender todos os pontos de vista, mas o meu é este e diz-me que Rüdiger mais não fez do que reagir como a máquina posta em movimento pelo clube o levou a reagir. E é aí, no que essa máquina – essas máquinas, que as há um pouco por todo o lado... – faz, ao transformar os jogadores e os adeptos em acéfalos braços armados, que devemos centrar os esforços de combate a esta polarização nefasta.
Estamos a falar de jogadores adultos, que têm cabeça própria e que mais valia que a usassem de vez em quando, é verdade. Só porque se tornou política oficial do Real Madrid começar a divulgar no seu canal de TV uns vídeos cretinos sobre as equipas de arbitragem designadas para os jogos que se seguem no calendário, os jogadores não têm de absorver as parvoíces que lá são propagadas via megafone mediático a aproveitar o efeito de bolha. Se nunca viram nenhum desses vídeos, têm aqui o que foi agora repetido à exaustão antes da final da Taça do Rei. E aqui um anterior, igualmente a propósito de Ricardo De Burgos Bengoechea, o árbitro designado para esta final e que acabou a chorar na conferência de imprensa que a antecedeu. Mas sim, isso é verdade: os jogadores deviam pensar duas vezes, encarar estas coisas com outra paz de espírito e não reagir à derrota como reagiu Rüdiger. E não, não me convence nem um pouco a ideia de que os vídeos são uma reação necessária ao ‘caso Negreira’, o momento em que se provou que, durante anos, o FC Barcelona andou a forrar com milhões as contas de um dirigente arbitral, alegadamente para elaborar relatórios que qualquer estagiário faria a troco de umas centenas de euros por mês, mas que na verdade compraram, sim, influência no setor. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Ou acreditamos nas instituições e na sua capacidade para se regularem, para punirem quem as desvirtua, ou mais vale saltarmos fora. E é aqui que há logo quem lembre que sim, que o Real Madrid bem tenta saltar fora. Da Liga de Tebas, da Federação de Louzan, da UEFA de Çeferin. Curiosamente, Florentino Pérez escolheu como parceiro predileto das tentativas de secessão esse Voldemort do Madridismo que é Joan Laporta, presidente do FC Barcelona.
Portanto, não. Os vídeos da Real Madrid TV sobre os árbitros não são um efeito do criminoso ‘caso Negreira’. São, isso sim, um efeito da rédea livre dada aos lobistas primeiro travestidos de gestores de redes e depois de jornalistas que mandam na TV do clube. E dos aprendizes de lobistas igualmente travestidos de jornalistas preocupados com as audiências que executam as ordens deles. Alguém percebeu que, além de “dar canal”, uma das melhores formas de influenciar as arbitragens é condicioná-las através de uma espécie de efeito subconsciente e quase pavloviano nascido da perceção de que se um clube em particular ganhar a tua vida fica mais fácil. É essa a base de qualquer sistema de poder e não, não é um exclusivo do Real Madrid ou sequer de Espanha. As experiências que temos de canais de clube em Portugal seguem também essa via e tornam-se mais perigosas quanto mais incontornáveis e vistas são – se a BTV é pior do que o Porto Canal ou a Sporting TV não é por ser mais fanática ou menos honesta e escrupulosa mas sim porque tem o exclusivo dos jogos do Benfica em casa e, por isso, se torna impossível deixar de a ver para assistir às ditas partidas. O problema não está nas análises do VAR, que já se provou dezenas de vezes que são independentes da realização dos jogos. O problema está no que aquilo que lá é dito ou mostrado provoca na perceção pública da realidade e no que isso depois acarreta nas tomadas de decisão, feitas até de forma subconsciente.
Porque uma coisa já todos sabemos: a nossa sociedade está de tal forma polarizada, as pessoas escolheram de tal maneira a sua própria bolha alimentada pelos algoritmos, que vão acreditar sobretudo no que vem do seu lado, da sua trincheira. Até já os fleumáticos ingleses cederam a esta modernidade em que os comentadores têm de ter um lado e defendê-lo acima de qualquer grau de lucidez, como se percebe na crónica que Jonathan Liew escreveu para o The Guardian na semana passada – e que eu tinha partilhado na última edição das Entrelinhas. Não se trata aqui de um comentador reconhecer qual é a sua preferência clubística, crendo de forma ingénua que os leitores ou os telespectadores vão depois acreditar que ele é capaz de desligar o chip clubista quando vai trabalhar. Não, não é isso. Trata-se, pelo contrário, de comentar de acordo com essa veia mais fanática, de reforçar esse chip quando se trabalha, porque é isso que a maior parte das pessoas quer ver. Um vídeo publicado pela Sky Sports no YouTube só com as caras de Jamie Carragher e Gary Neville numa goleada do Liverpool FC em Old Trafford (pode ver aqui) tem 1,3 milhões de visualizações. O sucesso foi tal que o canal passou a fazer sempre isso a cada confronto – e os próprios comentadores perceberam que isso lhes fazia crescer a influência. O duo de tiktokers australiano Shepmates fez na semana passada um notável vídeo humorístico (pode vê-lo aqui no Instagram, que TikTok não tenho...) a aproveitar o inflamado som original do relato de Conor McNamara e dos comentários de Paul Robertson na outrora fria BBC Radio 5 durante a reviravolta do Manchester United frente ao Olympique Lyon. É um admirável mundo novo que aí está.
Dir-me-ão os menos preocupados com estas coisas ou os que defendem esta forma mais espetacular e entretida de fazer jornalismo que isso importa pouco, que as pessoas continuam a tomar as suas decisões independentemente daquilo que lhes enche o dia-a-dia. Que olham para o comentador fanático e sabem que ali está uma personagem criada para o efeito. Que veem os vídeos da Real Madrid TV sobre os árbitros e distinguem aquilo da realidade, porque já lhes reconhecem um certo grau de parcialidade. Mas a verdade é que não, isso não acontece. Por acaso, na final da Taça do Rei, o braço armado ativado pela narrativa que já tinha predisposto toda a gente para a certeza absoluta de que Ricardo de Burgos Bengoechea prejudica sempre o Real Madrid só tinha ali à mão o gelo com que tratava uma lesão. Podia ter sido pior. Podia ter sido outra pessoa que não um experiente internacional alemão de 32 anos. Podia ter sido um ultra dos mais extremados, menos escrupulosos e com mais possibilidades de acesso a armas, por exemplo. E também ele seria um braço armado – ainda que mais armado do que Rüdiger. É por isso que Rüdiger vai cumprir seis jogos de castigo, que por acaso até calham numa altura em que estará lesionado, e o castigo não me parece leve, porque os maiores culpados são outros e ficarão por punir. E não, esta não é uma crónica anti-Real Madrid. Porque não conheço nenhum clube grande que neste momento possa passar por isto e ao qual não sirva a carapuça.
Como é que um evento de violência de um jogador alemão em Espanha redunda em um ataque á BTV?!