O Boavista como prova de vulnerabilidade
Há quem fique orgulhoso e há quem fique revoltado. A mim preocupa-me que seja possível comprar equipas de topo de Portugal com trocos esquecidos no bolso das calças.
A tomada de posição maioritária do hispano-luxemburguês Gérard Lopez no Boavista pode ser surpreendente para uns e motivo de orgulho para outros, mas a mim deixa-me sobretudo preocupado, porque é mais uma evidência da enorme vulnerabilidade dos maiores clubes portugueses face ao capitalismo internacional, e abismado, perante a incapacidade que tem sido revelada pelos nossos próprios empresários e dirigentes para os tornar lucrativos. Como muito bem percebeu Luís Campos, que esteve para ir embora mas acabou por ficar como principal conselheiro de Lopez no Lille OSC, é possível comprar um clube de topo em Portugal – uma SAD, pronto… – por valores irrisórios face à expectativa de receita gerada. E atenção, que isto vai começar a ser moda, o que impõe cada vez mais uma necessidade de regulação para a qual a UEFA não está devidamente acordada.
Já o disse e escrevi dezenas de vezes. O paradigma do futebol neste momento já não é nacional. É europeu. Quem percebe isso, está um passo largo à frente da concorrência – e Lopez já o entendeu há muito tempo. Enquanto o regulador-legislador não avançar também nesse sentido, os visionários vão-se expandido pelo futebol como os colonos pelo Oeste americano. Não vou colocar em dúvida a honestidade dos empresários que estão a construir redes de clubes pela Europa, aproveitando a miopia de quem devia regular movimentos de concentração que são, eles sim, perniciosos. Lopez, por exemplo, comprou 80 por cento das ações do Lille OSC por 80 milhões de euros, com dívida contraída junto do Elliot Management Group, o fundo de investimento norte-americano que conduziu uma operação igual com o chinês Li Yongyong no Milan e que, depois, aproveitando a incapacidade deste para pagar o serviço da dívida, tomou conta do clube. Além disso, Lopez está a finalizar a aquisição do RE Mouscron, equipa do meio da tabela da Liga belga, e prepara-se para entrar no Boavista, que há menos de 20 anos era campeão português.
Colocados ao pé do que custa comprar uma equipa como o Lille OSC – e já nem se fala de um Milan – tomar conta de uma equipa de I Liga em Portugal ou na Bélgica é um passeio no parque. Lopez, aliás, já esteve à beira de comprar a SAD do Gil Vicente – garantia 60 por cento das ações por seis milhões de euros, em 2016, mas a operação fracassou – e tentou entrar no Vitória FC, colocando-se ao lado do presidente em exercício, Vítor Hugo Valente, na falhada tentativa de reeleição, já esta época. Teve, além disso, relações próximas com a Belenenses SAD, como se percebe pela cedência de cinco jogadores no início desta época, entre os quais o guarda-redes Koffi e o médio Show, os únicos que acabaram por se tornar úteis e que são, hoje, titulares na equipa de Petit. Este é, no entanto, um modelo sujeito a muitos grãos de areia na engrenagem, sendo largamente batido pela possibilidade de comprar mesmo um clube: fica mais barato do que comprar um ponta-de-lança a sério no mercado internacional e pode ser facilitador de gestão de carreiras, sujeitas a diversos patamares de evolução até chegarem aos píncaros.
Ora, para os adeptos dos clubes comprados, isto pode ser entusiasmante ou revoltante. Há os que cedem à tentação de verem dinheiro fresco a entrar e defendem uma solução na qual “todos ganham”, quanto mais não seja pelo orgulho de ver estrangeiros manifestar interesse pelo seu emblema, esquecendo que vão ser, sobretudo, satélites, espaços de parqueamento de jogadores que ainda não estão prontos para jogar na casa-mãe. Há os que se indignam pela perda de maioria e de capacidade de decisão por parte dos sócios, ignorando que ninguém compra um clube para o ver definhar e que a ambição de quem investe será sempre a de fazer crescer o valor do seu investimento. A mim, que me preocupa a concentração de clubes de diversos países nas mãos dos mesmos investidores – e essa questão ética é mais uma para defender a rápida criação de uma Liga verdadeiramente pan-europeia –, este fenómeno deixa-me sobretudo espantado. Porque um clube que, como o Lille OSC, ainda esta época capitalizou 125 milhões de euros em três jogadores (80 milhões em Pépé, 23 milhões em Leão e 22 milhões em Thiago Mendes) e se diz que pode vir a vender Osimhen ao SSC Nápoles por mais 80 milhões, mesmo em tempo de pandemia, compra uma equipa capaz de lutar por uma posição europeia em Portugal com trocos esquecidos no fundo do bolso das calças e justifica esse investimento sem dificuldades – o que prenuncia que outros se seguirão ao Boavista. E sobretudo porque, sendo isso possível, me faz confusão ver como é que a maioria dos clubes portugueses está em tão grandes dificuldades para manter a coluna das receitas acima da das despesas.