O Benfica ganhou no "futebol feminino", sim
Filipa Patão ganhou o direito a entrar para a galeria de autora de frases inspiracionais que enfeitam o Instagram, mas há futebol feminino, sim senhores. Digo-o eu, que sou a favor da integração.
Quando, na sequência da vitória do Benfica na Taça da Liga de futebol feminino, ouvi Filipa Patão, treinadora da equipa vencedora, dizer que “não há futebol feminino – há futebol”, lembrei-me de uma das frases feitas que sempre circularam nas redações dos jornais em que trabalhei, segundo a qual “não há jornalismo desportivo – há jornalismo”. A intenção das duas tiradas é a mesma: equiparação de duas realidades que, justa ou injustamente, se encontram em planos diferenciados. Mas, apesar de tudo, há uma diferença: eu, que até já fui professor de “jornalismo desportivo” e diretor-adjunto em dois “jornais desportivos”, trabalhei durante uma parte da minha vida como chefe de redação no outro jornalismo, o global, se quisermos chamar-lhe assim. E estou muito longe de ser único ou de ter sido pioneiro. Ao mesmo tempo, começam agora a aparecer – e apenas na arbitragem – as primeiras mulheres a singrar no mundo do futebol dos homens. A guerra de Patão deve ser essa, a justa guerra pela integração, e não a estéril batalha semântica em que entrou de peito feito e da qual não vai tirar mais do que a invejável categoria de autora citada naqueles cartazes fixes com fundos porreiros que enchem o Facebook e o Instagram.
A elevação de Filipa Patão à categoria de autora de frases inspiracionais – e irreais, já agora – não deve desviar-nos do fundamental. É claro que há futebol feminino, como há jornalismo desportivo. O facto de categorizarmos as duas coisas não significa que estejamos a menorizar uma. No jornalismo já foi assim. Contavam-me os mais antigos que, no tempo deles, trabalhar na área do desporto não dava sequer direito a carteira profissional. Hoje já não é assim. Essa batalha, a da integração, foi ganha há décadas no plano legal, sendo que hoje há por aí muita boa gente com responsabilidade no jornalismo global que começou ou pelo menos passou pelo jornalismo desportivo. A questão é que se tratou primeiro de integrar na prática – e só depois se tratou das denominações. Não me considero menos jornalista do que qualquer um que trabalhe preferencialmente em política, economia, sociedade ou cultura. E na verdade posso alargar as minhas atividades a essas áreas: tive a sorte de já pertencer a uma geração à qual foi permitido fazê-lo. Filipa Patão, em contrapartida, ainda não pôde fazê-lo na sua carreira de jogadora: cabe-lhe agora tomar parte na luta que permita às jogadoras do futuro poderem vir a fazê-lo. Devo dizer que, no entanto, essa é uma luta que ainda está muito longe do epílogo.
É curioso que, tendo eu feito os comentários televisivos dos jogos do último Mundial de clubes, na RTP, nunca me referi à brasileira Edina Alves Batista, que apitou o jogo do quinto lugar, entre o Ulsan Hyundai e o Al-Duhail, como “árbitra feminina”. Porque ali, de facto, tanto ela como as suas companheiras de equipa de arbitragem estavam a funcionar numa realidade integrada. E não se portaram pior do que qualquer equipa de arbitragem masculina. Apesar do lamentável incidente diplomático que ocorreu depois, na entrega das medalhas – o xeque catari ali presente cumprimentou todos os participantes na cerimónia menos as árbitras, levando até o presidente da FIFA, Gianni Infantino, a negar a sua cumplicidade no facto em comunicado – a arbitragem é um campo que permite que sejam dados passos no justo sentido da integração. No plano do futebol jogado, porém, é preciso ter coragem de assumir duas coisas. A primeira é que ainda não estamos nesse nível. A segunda é que nunca estaremos enquanto não promovermos a integração com frequência. Enquanto não dermos às mulheres jogadoras de futebol a carteira profissional de “futebolista”.
Em Portugal, a promoção do futebol feminino tem sido uma das prioridades da direção da Federação Portuguesa de Futebol liderada por Fernando Gomes. Pouco me importa se dizem que à FPF interessa apenas o aumento de total de jogadoras federadas, porque esse seria um campo inexplorado e portanto com grande margem de crescimento, ou se de lá alegam que tudo é feito em nome da igualdade de género, que é um princípio com o qual é impossível deixar de concordar. A observação, porém, leva-nos a conclusões que ainda não são muito simpáticas para a causa, sobretudo se queremos entrar já em batalhas ao nível das que são travadas, por exemplo, nos Estados Unidos ou na Noruega, onde se reclama igual pagamento para as jogadoras de seleção em comparação com o que é dado aos homens. Sempre fui e serei a favor da igualdade de género, mas também vejo que o futebol jogado por mulheres ainda não tem a intensidade nem gera no público – e nos patrocinadores ou nos operadores televisivos – o interesse do futebol jogado por homens. Para que fique bem claro, sou a favor da integração: não vejo nenhuma razão válida para que, em pleno século XXI, se negue a uma mulher o direito de fazer parte de uma equipa de futebol onde estejam homens ou de jogar ou apitar uma competição onde estejam homens. Mas enquanto isso não acontecer, terei de dizer que o Benfica, ontem, ganhou a Taça da Liga de futebol feminino. Porque já houve outra antes, jogada por homens, e ganha pelo Sporting.