O Benfica, de Jesus ao JJ Boce
O sucesso do Benfica na eliminatória teve muito de tático e estratégico. Jorge Jesus foi protagonista, mas tem de resistir à tentação de ofuscar a solidariedade coletiva mostrada em campo.
O Benfica conseguiu o apuramento para a fase de grupos da Liga dos Campeões e a carrada de milhões de euros que de lá vem contrariando a sua natureza, o que pode ser visto de duas maneiras. Quem quiser pode olhar para os dois jogos e concluir que o PSV Eindhoven teve mais bola, mais oportunidades para marcar – e também teve mais jogadores em um terço do tempo. Mas a maneira mais correta de olhar para o que se passou ontem nos Países Baixos passa por reconhecer aquilo que este Benfica cresceu como equipa. Para arrancar este nulo e fazer o PSV parecer uma equipa ofensivamente fraca e sem ideias foi preciso uma solidez que o Benfica não mostrou em nenhuma ocasião durante toda a época passada. E isso não é novidade em Jorge Jesus, mas é preciso ir buscar a meia-final da Liga Europa de 2014 e o 0-0 contra a Juventus, em Turim, para encontrar algo de vagamente aparentado numa das suas equipas. Caberá agora ao treinador resistir à tentação de se transformar na figura mitológica do “JJ Boce” e manter o foco onde ele tem de ser mantido: na solidariedade coletiva que é o único caminho.
Em toda a época passada, o Benfica só manteve dois zeros nas suas balizas em nove jogos europeus – o 3-0 ao Standard Liège e o 4-0 ao Lech Poznan, sempre na Luz. De resto, sofreu dois golos num jogo com o PAOK Salónica, cinco em dois jogos com o Rangers, dois na visita ao Lech e outros tantos na deslocação ao terreno do Standard e mais quatro em duas partidas com o Arsenal. Fora de Portugal, então, já não deixava ninguém a zero desde Outubro de 2016, quando venceu o Dynamo em Kiev por 2-0. Esta época, em quatro jogos europeus com o Spartak Moscovo e o PSV Eindhoven já lá vão três zeros nas redes de Vlachodimos – mais um do que em toda a época europeia anterior e dois nas duas saídas do país. O que mudou? Mudou o sistema? Sim, ainda que os três defesas-centrais já tenham sido utilizados nas duas partidas que redundaram na eliminação da última Liga Europa, pelo Arsenal, com quatro golos encaixados. Mudaram os jogadores? Pouco, já que dos 16 utilizados ontem só dois não estavam no Benfica aquando dessa eliminatória com o Arsenal – João Mário e o suplente Meité.
O que mudou foi acima de tudo o espírito. O crescimento do Benfica passou sobretudo por não ter tido vergonha de arregaçar as mangas e está à vista na forma excessiva como tudo foi vivido por todos os intervenientes, desde a loucura de Jesus no banco à bola que Gonçalo Ramos chutou para a bancada já perto do final. Não estou a defender o jogo-feio. Estou só a dizer que o bonito, as combinações ofensivas com rápidas trocas de bola na frente, sempre o Benfica soube fazê-lo, e que ele não serve para todas as ocasiões. Alguém se lembra do jogo com o PAOK, que há um ano ditou a eliminação dos encarnados da Champions? Tirando o golo de Zivkovic, ficou mais alguma coisa nessas memórias? Certamente que não. Mas esse jogo ofensivo terá aparecido em Salónica. Ontem, é verdade, o Benfica nunca foi capaz de o pôr em campo e assim correu muito mais riscos, porque deu demasiada bola, espaço e iniciativa ao adversário. Mas a novidade foi a capacidade de resistência personificada no jogo de resistência feito por um Otamendi de faca nos dentes.
Claro que agora há dois caminhos para viver isto. Um é aproveitar serenamente – Rui Costa, por exemplo, acaba de ver a caminhada para a re-eleição alcatifada pela satisfação dos adeptos – e perceber que este espírito terá mesmo de ser revivido a cada jogo da Champions. Isto é algo que o FC Porto já sabe por experiência própria – manteve seis zeros defensivos em dez jogos da Liga dos Campeões anterior, dois deles contra os dois finalistas, o Manchester City e o Chelsea – e que o Sporting aprendeu a cultivar, ainda que com adversários de menor qualidade, na Liga Portuguesa. O outro caminho, o errado, é o do endeusamento. De um guarda-redes que fez dois excelentes jogos mas continua a ter lacunas, sobretudo na saída dos postes. De uma linha defensiva experiente e sólida, que até pode ter encontrado um quatro elemento em Morato, mas não vai chegar para todos os jogos da época. De um meio-campo que fez um jogo enorme de arreganho, mas precisa de o replicar a cada ocasião. De um ataque que tem muito potencial, mas que em Eindhoven nunca esteve dentro do jogo. E do treinador.
Jesus foi sagaz na construção do onze inicial, introduzindo mais um médio sem tirar o comando do setor a Weigl, algo que aconteceria se entrasse de início com Meité, por exemplo, com dois homens a par. Depois, reagiu sempre no tempo certo às incidências que o jogo lhe foi apresentando: entre a expulsão de Lucas Veríssimo e o intervalo, por exemplo, manteve uma linha de quatro atrás, regressando depois aos cinco, primeiro com Gilberto como terceiro central pela direita e introduzindo Vertonghen uns minutos mais tarde. Teve a noção do tempo exato para a entrada de Everton e Gonçalo Ramos. Em suma, acertou em tudo. E o problema de Jesus é que quando acerta tanto como ontem raramente resiste à tentação de se transformar nessa personagem já mitológica que é o “JJ Boce”. A ler os jornais de hoje e a quantidade de títulos que justamente realçam o brilhantismo da condução tática e estratégica por parte do treinador do Benfica, quase apetece reagir como o próprio Jesus reagiu quando lhe perguntaram se Vlachodimos tinha sido o homem da eliminatória: “Vocês estão sempre prontos a arranjar confusão!”. Cabe-lhe a ele não o permitir e manter a equipa no único caminho que a pode levar a bom porto – como equipa.