O Barça no limbo entre Cruijffismo e Guardiolismo
A maior diferença entre Cruijffismo e Guardiolismo é que onde o primeiro era intuitivo, instável e conflituoso, o segundo é formado, prático e apaziguador. No FC Barcelona de hoje há quem o esqueça.
A linha que separa o sucesso do insucesso pode ser ténue, mas as consequências de se estar em cada um dos lados são drasticamente diferentes. Que o digam os responsáveis do FC Barcelona. Mais um empate – agora com o Atlético Madrid –, associado à curta vitória do Real Madrid sobre o Getafe, levou à abertura de uma distância de quatro pontos para os líderes e, em princípio, futuros campeões de Espanha, e à abertura de uma crise institucional que pode abalar profundamente as fundações do clube. Enquanto o presidente Bartomeu se virou para o basquetebol, à volta dele anda tudo às cabeçadas. No FC Barcelona de hoje todos querem ser cruijffistas, mas não entenderam o que isso implica: andam perdidos no limbo entre o cruijffismo e o guardiolismo.
O jogo com o Atlético, que Bartomeu não viu no estádio e ao qual o treinador, Quique Setién, chamou Griezmann (120 milhões de euros…) para jogar apenas nos descontos (e para poder confraternizar com os muitos amigos que tinha do outro lado), foi há dois dias. Desde então, à polémica com Griezmann, cuja entrada até foi enfatizada pela reação de admiração na linha lateral de Diego Simeone, o treinador adversário, somaram-se outras. Tal como outras ainda já vinham de trás. Foi a demissão de Ernesto Valverde, em Janeiro, quando ainda liderava a Liga, e a noção de que o clube avançou para ela sem ter um Plano B preparado, acabando por contratar Quique Setién como tentativa pífia de recuperar o cruijffismo. Foram, depois, as críticas de Éric Abidal, o quarto diretor de futebol de Bartomeu, ao plantel, que acusou de ter trabalhado pouco com Valverde, motivando uma reação enérgica de jogadores como Messi. Foram, a seguir, no recente empate de Vigo, as imagens a mostrar que os jogadores, com Messi à cabeça, não ouvem Éder Sarabia, o adjunto de Setién, quando este lhes dirige a palavra. Agora, no jogo com o Atlético, ao caso-Griezmann, soma-se a reação de (quem mais?) Messi, o primeiro a ir embora para o balneário, logo aos primeiros acordes do Cant del Barça, e sem falar com ninguém. É, depois, a notícia de que o argentino congelou as negociações para a renovação de contrato, que acaba daqui por um ano – mais um caso para juntar à troca estranha de Arthur por Pjanic, à incapacidade para fazer regressar Neymar ou de manter Coutinho longe do Camp Nou.
É claro que em Espanha – como em Portugal e em qualquer lado – se pode ganhar e perder, mas as circunstâncias em que o Barça se arrisca a perder esta Liga são únicas, porque são acima de tudo filosóficas. Na verdade, Valverde foi demitido porque era um erro de casting, porque não tinha nada a ver com o espírito-Barça, espírito esse que viveria em Quique Setién, o mais cruijffista dos discípulos de Johan Cruijff – e a forma como tratou o caso Griezmann foi muito cruijffista. Quando lhe perguntaram por que razão tinha chamado o francês ao campo naquela altura, Setién respondeu que a alternativa era “não o pôr a jogar de todo”. É que o que os mais novos não saberão e que alguns dos mais velhos preferirão olvidar é que Cruijff, o mais genial dos treinadores da história do Barça – e possivelmente do Mundo – era um tipo instável, que perdeu mais Ligas do que ganhou e que vivia do confronto permanente. A relação do holandês com Josep Luis Nuñez, o presidente que o teve como treinador e que mandava nele – após o período Gaspart, nos que seguiram, de Laporta a Rosell, já era Cruijff quem mandava, na qualidade de guru… – foi sempre conflituosa, marcada na essência pela revolução permanente e por uma das mais famosas tiradas filosóficas do holandês: “Deves saber morrer pelas tuas próprias ideias”.
Ora, o problema deste FC Barcelona é precisamente de falta de convicções. Onze dos 21 membros da direção de Bartomeu já se demitiram, seis dos quais durante este ano de 2020. E isso tem depois reflexo no campo, onde o próprio Setién aprendeu as bases do confronto mas não parece suficientemente convicto nem convincente para levar um plano até ao fim. A principal diferença entre o cruijffismo e o guardiolismo – que se inspira no primeiro apenas no plano de jogo – está na sanidade mental. Guardiola é um tipo genial e obsessivo, mas as suas ideias sempre foram mais práticas e empíricas que as de Cruijff, que era muito mais genial, muito mais obsessivo, e por isso mesmo muito mais dado às colisões também. Cruijff era intuitivo. Era assim porque sim. Guardiola bebeu de Cruijff e aplicou às influências do mestre formação em tudo o que não era futebol. E é isso que falta a este FC Barcelona.
PS – Vou de férias. Será só uma semana. O Último Passe regressa a 13 de Julho.