O ajoelhar da complacência
Seferovic perdeu um golo cantado em Barcelona e Jesus voltou a ajoelhar-se. Desta vez não estava derrotado, mas sim desesperado com a complacência ou a aselhice que impediu a estocada final.
O segundo ajoelhar de Jorge Jesus, ontem, em Barcelona, foi, ainda assim, menos cruel e mais promissor do que o primeiro. Ao contrário da genuflexão no Dragão, em 2013, a de ontem foi de complacência e não de derrota. Ontem, o desespero também estava lá, mas era o de quem percebeu que não ia acabar já ali com o adversário, que estava a dar-lhe mais quinze dias para pensar como pode ir arrancar a qualificação à caverna do ogre alemão, geralmente inflexível neste tipo de coisas. O que o Benfica trouxe de Camp Nou não foi uma vitória moral. Foi um empate a zero, que o deixa a depender de resultados alheios, mas que mostra o caminho aos outros dois clubes portugueses hoje envolvidos na Liga dos Campeões: há que encontrar os pontos fracos dos gigantes que têm pela frente e, depois, de preferência, não perdoar quando se trata de ganhar.
O que está ao alcance do trio português na Champions pode ser uma ocasião histórica, não só de repetir a qualificação de pelo menos duas equipas para os oitavos-de-final, alcançada em 2016, na sequência da vitória da seleção no Europeu, como até de a superar. O recorde de pontos numa fase de grupos – os 26 somados em conjunto por FC Porto, Sporting e Benfica em 2014 – parece mais difícil e pode até nem ser necessário. Em condições normais, chegam 25. Temos neste momento 16, sendo que o Sporting se qualificará com mais três, se os obtiver hoje, frente ao Borussia Dortmund, o Benfica precisa desses mesmo três, no último jogo, em casa com o Dynamo Kiev – desde que nesse dia o Barça não vença em Munique, o que parece difícil – e o FC Porto também depende de uma só vitória, se a conseguir no último dia, em casa com o Atlético Madrid.
Disse Jesus no final do jogo de ontem que em 30 anos como treinador nunca tinha visto um jogador perder um golo como o que ontem Darwin Nuñez ofereceu a Seferovic e este mandou pela linha de fundo. Nos mesmos 30 anos de jornalista, já vi coisas iguais ou até piores, como uma bola que, já sem guarda-redes nem defesa pela frente, Bryan Ruiz atirou da pequena área para a bancada Norte de Alvalade, perdoando ao Benfica um empate no dérbi que muito provavelmente daria o título de campeão de 2016 ao Sporting de Jesus. A genuinidade com que o treinador contribuiu ontem para a depressão em que o suíço certamente já estaria – conseguiu numa só flash-interview mostrar a preocupação de consolar o jogador e mandá-lo para baixo de um camião TIR em movimento... – não apaga, contudo, um jogo que o Benfica geriu sempre bem, tanto do ponto de vista tático como estratégico. Aproveitou o mau momento do FC Barcelona, ainda avolumado pelo facto de Xavi Hernández ter optado por encaixar no esquema encarnado em vez de apostar na sua identidade? É verdade. Mas só se pode enfrentar o adversário que se tem pela frente. E aquele FC Barcelona não mostrou ser melhor do que o Benfica.
O FC Barcelona continua a ter margem de progressão, que se viu ontem, por exemplo, quando entrou Dembelé – o único capaz de criar verdadeiros problemas a uma organização defensiva impecavelmente liderada por um Otamendi de nível internacional, que ainda hoje seria sem dúvida titular do outro lado. Para o Benfica teria sido pior jogar este desafio daqui a 15 dias – disso não tenho dúvidas. Porque a guerra de Xavi passa por recuperar gente como Dembelé, Pedri, Fati ou até Agüero e Braithwaite, já para não falar de Coutinho. A guerra de Jesus, como hoje a de Rúben Amorim ou de Sérgio Conceição, nos jogos em que enfrentarão o Borussia Dortmund ou o Liverpool FC, é sobretudo a de fazer a equipa acreditar que pode jogar e discutir os resultados com a classe mais alta do futebol europeu. E, nisso, o falhanço de Seferovic pode ser o espelho do sentimento coletivo. Se foi aselhice – e foi, sem dúvida – é preocupante, porque demonstra falta de capacidade. Se foi complacência – e foi, também – é sinal de que se foi longe demais.