O adulto no jardim escola
O maior mérito deste Botafogo não são os excelentes jogadores, que no Brasil quase toda a gente os tem. A diferença, o Botafogo fá-la pela organização, que lhe permitiu as três vitórias mais recentes.
Palavras: 1352. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram).
Há uma razão mais ou menos evidente para que os dois treinadores de maior sucesso nestes últimos dois anos de Botafogo tenham perfil semelhante, sobretudo equilibrado e racional. Luís Castro, primeiro, e Artur Jorge, agora, foram uma espécie de adulto no jardim escola que dá a ideia de ser o clube de John Textor. O primeiro teve o cuidado de se desmarcar do sucesso, na interessante entrevista que concedeu ao Podcast “No Princípio Era a Bola” (a ouvir aqui), e a verdade é que nunca saberemos se, tivesse ele por lá ficado em vez de acorrer ao apelo endinheirado do Al Nassr, o Botafogo teria chegado na mesma ao topo do cume que está a atingir com o segundo. Campeão da Libertadores, Artur Jorge levou nesta madrugada a equipa a superar o maior desafio que lhe restava na reta final do Brasileirão e, ganhando (1-0) em Porto Alegre ao Internacional, ficou a um ponto do título de campeão nacional. A festa está marcada para domingo à tarde, quando o São Paulo FC for jogar ao Nilton Santos, e do encontro não se espera um passeio mas sim nova demonstração de sofrimento, resiliência e, sobretudo, equilíbrio, que tem sido a imagem de marca desta equipa e que o próprio Artur Jorge já destacara, em entrevista que dera ao jornal O Jogo e que só foi publicada na edição de hoje, após a partida (a ler aqui).
Há-de ter sido precisa uma enorme capacidade de dirigir o foco do grupo para o sítio certo para que a equipa chegasse a este final de época no ponto em que está. O Botafogo ganhou os seis desafios de campeonato contra o segundo, terceiro e quarto da tabela – Palmeiras, Flamengo e Internacional –, mas não só dois deles foram agora, fora de casa, na penúltima e antepenúltima jornadas, tendo pelo meio uma final da Libertadores em que jogou com um a menos desde o segundo minuto, como a somar a tudo isso apareceu a assustadora quebra de uma equipa que ameaçava morrer outra vez na praia, como lhe acontecera há um ano. Esse fantasma Dickensiano do Botafogo do Natal Passado era um dos maiores adversários de um clube que há apenas três anos estava a celebrar o título da Série B, a permitir-lhe voltar a jogar na divisão principal, e a compra da sua SAF pelo milionário norte-americano John Textor, que lhe trouxe o investimento sem o qual não haveria hipótese de crescimento. Com o investidor apareceu o primeiro treinador português, Luís Castro, contratado logo após o Carioca de 2022, em Março, de forma a iniciar o trabalho no Brasileirão. 11º classificado no ano de entrada no escalão principal, Castro viu a equipa melhorada – e ele próprio destacou agora o trabalho, por exemplo, do departamento de scouting – e foi conseguindo resultados que chegaram a fazer do Botafogo um inesperado favorito para o campeonato de 2023.
Quando Castro saiu, para ir treinar o Al Nassr, no final de Junho, o Glorioso liderava, com mais sete pontos do que o segundo, que era o Grêmio. Mas o Brasileirão é uma maratona e só se tinham jogado 12 das 38 jornadas. Cláudio Caçapa entrou como interino e, em três rondas, nas quais ganhou sempre, fez crescer a vantagem para os 12 pontos com que entregou a equipa a Bruno Lage. Este, porém, só durou um par de meses até ser demitido pelo sempre inconstante Textor, que entre as teorias da conspiração lançadas a propósito das arbitragens e declarações bombásticas não perdoou ao seu segundo treinador português os quatro jogos seguidos sem ganhar que ele viveu em Setembro e Outubro. Ainda assim, quando Lage saiu e deu lugar à promoção de Lúcio Flávio, a equipa ainda tinha sete pontos de avanço do Red Bull Bragantino e oito para o Palmeiras. Faltavam 13 jornadas. Em início de Novembro, um jogo fez a história. O Botafogo recebia o Palmeiras com sete pontos de avanço e, ao intervalo, já ia na frente, por esclarecedores 3-0. Gritava-se “É campeão”. Só que a segunda parte entrou na categoria dos maiores pesadelos dos torcedores cariocas: o Palmeiras virou para 4-3, com três golos na reta final da partida. A distância passou a ser de quatro pontos, com sete jornadas para o fim. Era gerível? Provavelmente, sim, não tivesse o Botafogo perdido toda e qualquer serenidade. Lúcio Flávio perdeu com o Vasco da Gama e, depois, em casa com o Grêmio. Com o empate no terreno do Bragantino foi ultrapassado no topo a quatro jornadas do fim. E já não foi ele quem acabou o campeonato, em quinto lugar, fora até das vagas de qualificação direta para a Libertadores.
Instale a App. É gratuita e em 2025 vai dar jeito:
Porque é que o contexto é importante? Porque, ainda que desta vez tenha mantido o técnico até final, o Botafogo de 2024 voltou a vacilar. Quando Artur Jorge liderou a equipa na visita ao Allianz Parque, na semana passada, o Botafogo estava a entrar em crise. Primeiro desde a 25ª jornada, depois de ter alternado no topo com o Flamengo, o Palmeiras e até o surpreendente Fortaleza, o alvinegro nunca chegou a dispor de uma vantagem tão confortável como há um ano. Mas eram, ainda assim, seis pontos no início de Novembro. E aí vieram os três empates seguidos com Cuiabá, Atlético Mineiro e Vitória da Baía, a deixar tudo em aberto para a reta final. Uma reta final que se apresentava muito difícil para a equipa de Artur Jorge. Veio a partida fora de casa com o Palmeiras, campeão e líder – porque tinha mais vitórias, que é o primeiro critério de desempate –, na qual o nulo não seria suficiente. O Botafogo marcou o 1-0 num canto estudado, aguentou-se defensivamente e acabou por alargar a vantagem para 3-1 num jogo de coragem e contra-ataque marcado também pela pressão física que impendia sobre a equipa, que três dias depois jogava a final da Libertadores contra um Atlético Mineiro que nessa noite se dava ao luxo de poupar os titulares. Veio a final de Buenos Aires e, logo aos dois minutos, a expulsão de Gregore, a deixar o Botafogo reduzido a dez e forçado a mais uma demonstração de coragem e contra-ataque, outra vez recompensada com um 3-1 e a conquista do troféu. A festa que se seguiu terá avolumado o desgaste numa equipa que, esta noite, entrava no Beira Rio para defrontar o Internacional, a equipa com mais pontos ganhos na segunda volta deste Brasileirão. Foi o jogo mais complicado dos três, aquele em que o Botafogo menos mostrou no ataque, mas um jogo que a equipa resolveu com mais uma bola parada estudada – muito bom o canto que deu o golo de Savarino – e outra demonstração de resistência defensiva.
Tudo somado, pode haver a tentação de se olhar para este Botafogo e sublimar apenas essas virtudes que os brasileiros consideram mais “europeias”, próprias de um futebol mais tático, como a resistência e a organização. É verdade que muito desta equipa se faz da força que lhe dá a charneira central da defesa comandada por Barboza ou da organização potenciada pelos contributos de Gregore ou, sobretudo, do sempre criterioso Thiago Almada, mas não é justo reduzir a equipa a essas facetas, porque ela tem muito talento ofensivo em jogadores como o venezuelano Savarino ou os brasileiros Luiz Henrique e Igor Jesus, que o capital de John Textor permitiu recuperar de experiências menos felizes no exterior. Só aqui já citei seis jogadores fundamentais, que não estavam no Botafogo de 2023. Mas, sim, muito da diferença para o ano passado se faz também da liderança serena de Artur Jorge, que num clube marcado pelas sempre folclóricas intervenções de Textor se comporta como o adulto num jardim escola. Foi isso que se viu nestas três vitórias seguidas que separam a época do fracasso que ela ainda ameaçou vir a ser.