O abraço à lotaria
Ganham corpo as notícias de que a UEFA se prepara para abolir os prolongamentos e decidir as eliminatórias empatadas diretamente nos penaltis. Isto é bom? Não. Podia ser melhor? Pois também não.

Palavras: 1444. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram).
Nunca se ouviu falar tanto de fadiga muscular como agora. Foi a gestão de Gyökeres e Morita, afastados dos jogos com o Bolonha FC e o Farense, de maneira a depois estarem aptos para defrontar o FC Porto e o Borussia Dortmund – ou pelo menos há-de ser por isso que rezam os responsáveis técnicos e o departamento de performance leoninos. É a mulher de Di María a dizer no Instagram que não senhores, que Angelito não está lesionado, que o que tem é fadiga e que provavelmente vai descansar contra o Moreirense para depois poder estar apto para a decisão do playoff da Liga dos Campeões, contra o AS Mónaco. É o FC Porto a perceber que enfrenta o final desta época com menos opções, que vai ter Mundial de clubes a partir de 14 de Junho, com Villas-Boas a reiterar que a ideia é ir até ao fim, a 13 de Julho, mas vendo o SC Braga a aproximar-se cada vez mais do terceiro lugar, que é o único (além do primeiro, claro) a livrar a equipa da pré-eliminatória marcada para uma semana depois da final do Mundial norte-americano. É nesse contexto que ganha corpo a ideia de acabar com os prolongamentos e de os substituir logo aos 90’ pelo desempate por penaltis. A UEFA está a estudar a fórmula, para a aplicar na Liga dos Campeões a partir de 2027, quando acabam os atuais acordos de venda de direitos. Será boa ideia? É o que pode ser. Mas podia ser pior.
Há um jogo na lenda do futebol português, a final da Taça de Portugal de 1967, disputada entre Vitória FC e Académica e decidida na “morte súbita” aos 24’ do segundo prolongamento, com um golo de Jacinto João. Os 90 minutos tinham acabado com um empate a uma bola, depois Guerreiro adiantou o Vitória logo aos sete minutos do prolongamento, mas Ernesto fez o golo do empate a três minutos do final. A solução regulamentar era um segundo prolongamento, até uma das equipas marcar – e quem marcou foram os sadinos. Na edição vespertina desse mesmo dia 9 de Julho – as épocas já acabavam tarde, mas só começavam em Setembro... –, o Diário de Lisboa falava em “esforço notável e quase desumano” das duas equipas. No dia seguinte, em artigo de opinião, foi a vez de Fernando Soromenho utilizar expressões duras, como “pesadelo” e “tortura”. “A justificadíssima alegria dos setubalenses não ofuscou o sofrimento que alastrara no Jamor”, escrevia, rematando: “[o golo de Jacinto João] sobrepôs-se a todas as ocorrências para ilustrar uma imagem que repugna aceitar como defensável”. Começou nesse dia uma campanha em defesa do jogo de repetição, a finalíssima, que veio a ser adotada e consagrou o Sporting em 1978, o Boavista em 1979, o Estrela da Amadora em 1990 e o FC Porto em 1994 e 2000. O aperto do calendário, que nas eliminatórias anteriores já tinha levado à troca dos desempates com mudança de anfitrião pelos penaltis, logo ali, alargou a influência às finais, a ponto de desde essa decisão já termos visto três com vencedor definido da marca dos onze metros, as ganhas pelo Sporting em 2015 e 2019 e pelo SC Braga em 2016.
O desempate por penaltis já foi responsável por alguns dos momentos mais épicos da história do jogo. Internacionalmente, deu-nos o penalti “à Panenka”, a picadinha na final do Europeu de 1976, a valer à Checoslováquia a vitória sobre a RFA. Ou os quatro remates defendidos por Duckadam, na final da Taça dos Campeões Europeus ganha pelo Steaua Bucareste frente ao FC Barcelona, no Camp Nou, em 1986. Acontece que estas situações não têm só heróis, como o Ricardo que defendeu sem as luvas o ensejo de Vassell, nos quartos-de-final do Euro’2004, antes de desferir ele mesmo o tiro que permitiu à seleção nacional avançar na competição. A primeira imagem que tenho de um homem a chorar é a de Uli Stielicke, defesa da seleção da RFA, na meia-final do Mundial de 1982, depois de falhar um penalti que parecia ir meter a França na decisão – depois a coisa ainda virou e foram os alemães quem perdeu em Madrid com a Itália... Há jogadores cujas carreiras ficam para sempre manchadas por um falhanço sem remissão – foi o caso de Gareth Southgate, cuja personalidade como treinador foi afetada pela forma como perdeu o penalti decisivo na meia-final do Europeu de 1996, frente à Alemanha. E Beckham, que meteu uma bola em órbita naquele mesmo Portugal-Inglaterra de 2004? Ou Baggio, o algoz da Itália na final do Mundial de 1994? A crueldade de se resumir uma competição num só pontapé na bola não precisa de ser explicada. E mesmo que não se pense que os penaltis são “uma lotaria”, que não são, porque são acima de tudo competência técnica e mental aliadas à frescura física, não deixam de ser uma forma muito incompleta de definir vencedores e vencidos num jogo que é bastante mais do que isso.
Os penaltis são, sobretudo, uma fórmula penalizada pela evolução histórica, pela forma como a eles chegámos. O problema dos penaltis como modo de definir um vencedor não é o de serem fortuitos. É o de sabermos que tempos houve em que se voltava a jogar e que isso seria muito mais justo... Há pouco menos de um mês fui “enganado” por um título de um artigo no Telegraph. “FA [que para quem não sabe é a sigla da Federação Inglesa] rouba ao Tamworth a merecida repetição”, dizia a crónica da derrota daquele clube do centro de Inglaterra contra o poderoso Tottenham. Fui ler, a ver de que “roubo” se falava, e era muito simples: os Spurs marcaram os seus golos no prolongamento e, tivesse a Taça de Inglaterra o seu regulamento original, nem prolongamento haveria, o que permitiria àqueles jogadores do quinto escalão a oportunidade de uma vida de irem jogar a Londres, ao Tottenham Stadium. O que isto nos diz é que se virmos as coisas da frente para trás, até os prolongamentos podem parecer injustos. Nessa perspetiva, como é que se aceita que uma competição que deve ser disputada em jogos de 90 minutos depois se decida numa série de cinco penaltis? O ideal, sem qualquer dúvida, era que se voltasse a jogar, necessariamente respeitando os quatro dias de recuperação e o mês de férias no final de cada época. E que depois as competições atrasassem sem problemas, que se não pudéssemos ter campeão em 2024/25 teríamos em 2024/25/26. A transformação do futebol em espetáculo global, no entanto, não o permite. A pressão cresceu com o aumento dos lucros vindos da igualmente crescente mediatização. Nem de propósito, os adeptos ingleses tradicionais, os da “working class”, estão a protestar cada vez mais contra a subida do preço dos bilhetes e contra o que é uma Premier League jogada acima de tudo para a televisão, encarada como ferramenta de marquetização global capaz de levar ao país cada vez mais praticantes do chamado “turismo desportivo”.
Também as competições europeias já tiveram jogos de repetição. Depois tiveram moeda ao ar – e tanto FC Porto como Benfica e Académica já foram eliminados por esta fórmula, ela sim insultuosa – antes de terem os penaltis. Nas competições de seleção também já se tentou a tal “morte súbita”, a que o politicamente correto preferiu chamar “golo de ouro”, mas só até se ver que o modelo prejudicava o espetáculo, por aumentar a prioridade da segurança face ao medo de perder num só erro. Como está o futebol, hoje em dia, os jogos de desempate são impossíveis e até os prolongamentos se apresentam como um suplício. Os penaltis são um mal menor – e sim, parecem-me solução melhor do que decidir a favor de quem tenha rematado mais ou beneficiado de mais cantos, porque isso seria premiar a ineficácia. Temo é que na base da adoção desta solução esteja algo que não a justiça. O programa mais visto da televisão portuguesa em 2024 foi o Portugal-Eslovénia, dos oitavos-de-final do Europeu, na RTP1. O segundo foi o Portugal-França, dos quartos, na TVI. Não posso dizer com certeza absoluta porquê nem essa há-de ter sido a razão única, mas tenho um palpite: ambos tiveram penaltis. E se há coisa que os penaltis nos dão é espetacularidade instantânea. Não está mal, desde que não achemos de repente que aquilo que a eles conduz, que é o jogo, afinal de contas, não serve para nada.
Os pênaltis é um conforto de alma e maravilhoso para a adrenalina quando não está em jogo o nosso clube ou país.👀⚽💪🏆