Nuno, o Tottenham e as regras de mercado
A escolha de Nuno Espírito Santo pelo Tottenham pode ser vista como uma recompensa pelo bom trabalho que fez em Wolverhampton ou como a incapacidade do clube londrino sair da esfera-Mendes.
A notícia da nomeação de Nuno Espírito Santo como treinador do Tottenham pode ser vista de três maneiras. De forma irónica e até um bocadinho frustrada, que foi como a encarou, por exemplo, Gary Lineker, ex-estrela do clube, da seleção e da TV inglesa, que escreveu no Twitter que Nuno seria “o primeiro português a dirigir o Tottenham em três meses”. Como recompensa pela perseverança e pelo bom trabalho que o técnico fez no Wolverhampton WFC, que levou do Championship a dois sétimos lugares na Premier League e à Liga Europa. Ou como a queda flagrante de mais um clube desesperado nas malhas do super-agente Jorge Mendes, que no mercado estival que tarda em arrancar terá seguramente mais um par de meninos crescidos com quem brincar.
As duas primeiras formas de encarar a contratação de Nuno Espírito Santo por um dos mais populares clubes de Inglaterra são perfeitamente naturais e saudáveis. Adepto do Tottenham e do Leicester City, Lineker terá desenvolvido o espírito crítico com anos como apresentador de bons programas de televisão e, tal como lhe lembraram nos comentários ao seu “tweet”, já encarou assim, com este misto de pessimismo e ironia, a contratação de Claudio Ranieri, o italiano que depois fez o milagre de tornar os “Foxes” campeões ingleses. A verdade é que a demora que Daniel Levy, presidente do Tottenham, levou a apresentar uma decisão, depois de ter despedido José Mourinho, outro treinador da esfera de influência e representado por Mendes, dificilmente se explica com a dificuldade de encontrar quem assegure o regresso “ao ADN de futebol atacante” que está no coração do clube. Mourinho foi despedido a 19 de Abril, a dias de uma final, e Nuno só foi contratado dois meses e meio depois, tendo o jovem Ryan Mason assegurado o interinato.
Em todo este processo, que envolveu conversações adiantadas com Gennaro Gattuso, mais rapidamente vejo uma tentativa de emancipação de Daniel Levy e Fabio Paratici, o diretor que os Spurs contrataram na Juventus, seguida de um reconhecimento de que o Tottenham não consegue caminhar sozinho nesse mundo agreste que é o mercado de futebol. E o que faz soar os alarmes antes da contratação de Nuno Espírito Santo, que toda a gente sabe estar visceralmente ligado a Jorge Mendes – são amigos de longa data e o então guarda-redes foi mesmo o primeiro agenciado do então não tão super-agente – foi a entrada de Gattuso neste processo. O antigo médio do Milan, que treinou o SSC Nápoles na época passada, chegou a ser apresentado pela Fiorentina, mas passou apenas 22 dias no cargo antes de sair. Em causa, diz o New York Times, estiveram as ligações ao universo-Mendes, que não terão agradado aos donos americanos do clube italiano. A ponto de, com a planificação da época em curso, terem revertido a marcha – e de só ontem terem anunciado o novo treinador, Vincenzo Italiano, que chega da Spezia.
“Dias depois de ter começado a trabalhar, Gattuso (…) entregou à direção uma lista de três alvos de mercado. Dois desses jogadores são, como Gattuso, representados por Mendes. Mas todos jogam atualmente em clubes que dependem de Mendes para lhes obter os melhores preços por jogadores que pretendem ‘descarregar’”, escreve Tariq Panja no New York Times. O artigo identifica os jogadores: Sérgio Oliveira e Corona, ambos do FC Porto, e Gonçalo Guedes, do Valência CF. No caso dos jogadores portistas, continua o jornal norte-americano, Mendes terá pedido à Fiorentina que pagasse “20 milhões de euros por cada um, mais três milhões de euros por ano de salários em contratos de cinco anos” que pareceram demasiado longos aos responsáveis pelo clube, considerando a idade dos jogadores (Sérgio Oliveira tem 29 anos e Corona 28). A Fiorentina emancipou-se e rescindiu contrato com Gattuso a 17 de Junho. O Tottenham, que já teve em José Mourinho um treinador da esfera Mendes, optou por manter a rota com Nuno Espírito Santo, cujo sucesso em Wolverhampton foi sempre feito com jogadores da carteira da Gestifute. E, além dos três grandes de Portugal (e do SC Braga), cuja crescente dependência dos valores que o super-agente lhes consiga no mercado pelos seus talentos emergentes levou a uma estranha confluência debaixo do mesmo guarda-chuva milionário, a Gestifute já tem na sua esfera de influência, pelo menos, o Wolverhampton (via Fosun, a empresa chinesa de que é parceira em vários negócios), o Valência (via Peter Lim), o FC Famalicão (via Idan Ofer, um dos donos do Atlético Madrid) e os clubes onde coloca os treinadores da sua maior confiança. Veremos até que ponto a AS Roma entra neste circuito, cujo primeiro membro honorário foi o Dynamo Moscovo de Alexei Fedorychev, em meados da primeira década deste século.
É evidente que nada nestes processos é absolutamente claro – aliás, não é isso que peço, pois não é suposto que as transferências de jogadores sejam transparentes, porque se assim fosse o segredo deixaria de ser a alma do negócio. A questão é que, em qualquer negociação de mercado, os interesses dos jogadores e os dos clubes deviam ser, à partida, conflituantes. É por isso que se chama “negociação”. Neste sistema não o são. São convergentes. Porque quem compra é muitas vezes “defendido” pelas mesmas pessoas que “quem vende”. É isso que está a desvirtuar o mercado do futebol e é isso que as regras internacionais têm de achar forma de parar. Como fazê-lo? Essa é a pergunta do milhão.