Não há inocentes no fracasso do Benfica
Do presidente à estrutura e ao treinador, toda a gente tem ilações a tirar do muito que correu mal na primeira época sem títulos desde 2013.
E, assim de repente, o Benfica vê-se na fase pré-Jesus. A época de 2020/21 foi, bem feitas as contas, a pior desde a primeira chegada do treinador da Reboleira à Luz, em 2009: sem títulos, sem chegar sequer perto deles, com exceção da final perdida da Taça de Portugal, e ainda por cima marcada pelo maior investimento de sempre, resultando num plantel desequilibrado, por lhe faltar coerência entre ideias e recursos. O defeso vai servir para se apurarem todas as responsabilidades do fracasso, sendo que da certeza da resposta dependerão as hipóteses de sucesso da época que aí vem. Porque, entre presidente, a tão afamada estrutura, o treinador e os jogadores, é bom que entendam que no Seixal não há inocentes.
Em dois anos, o Benfica perdeu onze pontos, dos 87 do título ganho com Bruno Lage em 2019, aos 77 de Lage e Nélson Veríssimo em 2020 e aos 76 de Jesus em 2021. No processo, deixou de marcar 34 golos – um por jornada, entre os 103 de 2019 e os 69 da corrente época – e, ao contrário do que lhe tinha sucedido em 2013, a única época sem troféus desde a chegada de Jesus, sem compensar com a presença em finais. O fracasso de 2020/21 está bem à vista no afastamento da Liga dos Campeões logo na terceira pré-eliminatória, na saída da Liga Europa nos 16 avos de final, na eliminação da Taça da Liga nas meias-finais e no esfumar do sonho do título bem longe da reta final. Nesse ano de 2013, é bom lembrá-lo, o Benfica perdeu o terceiro título nacional seguido, mas acabou o campeonato com apenas uma derrota e cinco empates – fez mais pontos em 30 jogos do que este ano em 34. Foi o ano do golo de Kelvin, do ajoelhar de Jesus no Dragão, ao antepenúltimo minuto da penúltima jornada, das finais perdidas na Liga Europa (perante o Chelsea) e na Taça de Portugal (com o Vitória SC). Desta vez ficou muito longe disso.
Em 2013, quando toda a gente esperava que Luís Filipe Vieira demitisse Jesus, o presidente dos encarnados reforçou a confiança no treinador, mantendo-o no cargo e batendo o recorde de investimento na equipa: gastou 55 milhões em reforços no defeso, levando o investimento a bater as receitas de mercado pela primeira vez desde 2009. Jesus respondeu com os dois primeiros dos quatro títulos do tetra – os outros dois já pertenceram a Rui Vitória. A convicção de Vieira no treinador nesse difícil Verão de 2013 contrasta com o navegar à vista que se tem visto desde então. Jesus começou por ser escorraçado – acabou por assinar pelo Sporting – em 2015 porque queria sempre mais jogadores, mais estrelas internacionais, mas gastos no mercado, e isso contrariava o sonho do presidente, que era ser campeão europeu com uma base de jogadores formados no Seixal. Foi essa a filosofia que levou à escolha de Vitória e, depois, de Bruno Lage. Mas, mesmo após assegurar que estava “dez anos à frente de toda a gente”, bastaram ao presidente dois campeonatos perdidos em três anos para o FC Porto de Sérgio Conceição para, em 2020, fazer novo zigue para responder aos zagues que tinha feito até então: regressou Jorge Jesus e o clube virou a balança de transações do avesso, voltando a bater o seu próprio recorde de gastos no mercado de transferências e a despender mais (105 milhões) do que recebeu (76 milhões) na recomposição do plantel. Tal já não sucedia desde (adivinhou…) 2013.
Dois anos depois de ter sido campeão com três jogadores made in Seixal (Rúben Dias, João Félix e Gedson) nos onze mais utilizados e mais dois (Ferro e Florentino) à porta, o Benfica foi um distante terceiro com zero elementos da formação no onze-base – o mais frequente foi Diogo Gonçalves, 15º na tabela de utilização. Esta indefinição no rumo definido de cima – a política desportiva é responsabilidade da administração, como se percebeu quando o Benfica se recusou a renovar contrato com o treinador então bicampeão, em 2015 – é parte do problema, mas não justifica plenamente o fracasso de 2020/21. Esse tem mais razões, como o surto de Covid19 que afetou o plantel em finais de Janeiro e levou à perda de sete pontos em três jornadas – empates com Nacional e Vitória SC e derrota com o Sporting no encerramento da primeira volta – ou, sobretudo, a inadequação do plantel mais caro da história do Benfica às ideias do treinador que ia liderá-lo.
Não sou, de todo, especialista em questões de saúde, mas entendo que o efeito devastador da Covid19 no Benfica devia ser bem avaliado em inquérito interno que, se foi feito, não foi publicitado. A que se deveu a força daquele surto, algo que não se viu em mais nenhum clube profissional em Portugal? Ao azar? À sabotagem dos adversários, como chegou a ser sugerido nas redes sociais, sempre cheias de infundadas teorias da conspiração? Ou à incompetência de uma estrutura que não soube conter a doença como fizeram outros clubes quando tiveram casos positivos? Que a Covid19 ia ser uma das variáveis importantes na Liga de 2020/21 já toda a gente sabia. Mas terá toda a gente feito o que era preciso para combater os efeitos da doença? E fará sentido Jorge Jesus alargar a carga negativa do surto a toda uma temporada, como tem feito nas sucessivas comunicações desde aí, falando do “inimigo invisível” ao qual ainda não viu “a cara” para justificar os maus resultados de oito meses? Ou isso é mais uma forma de sacudir dos ombros a culpa num processo de formação de um grupo que, por mais caro que tenha sido, não estava de acordo com as ideias do treinador?
Não sei quem escolheu os jogadores para o Benfica 2020/21. Mas, visto de fora, vejo uma enorme diferença com o grupo de 2009/10. Há onze anos, quando trouxe o Benfica de volta à Terra depois dos devaneios espanhóis com Camacho, Koeman ou Quique e prometeu que ia pôr a equipa a jogar “o dobro”, Jesus cumpriu. A equipa de 2009/10 jogava mesmo o dobro das antecessoras, porque os jogadores desse grupo assentavam como uma luva nas ideias do treinador. Desta vez, quando regressou e prometeu que não ia jogar o dobro mas sim “o triplo”, Jesus estava apenas a ser Jesus, ou porque deixou que a soberba lhe turvasse as ideias ou porque quis mostrar para fora uma confiança que não podia ter. Era evidente desde o início da temporada que este grupo não servia o futebol que ele vinha usando desde que chegou ao topo.
Já nem vou falar de questões de qualidade – Seferovic não é Cardozo, Rafa não é Di Maria, Taarabt não é Aimar, Pizzi ou Everton não são Saviola… Falo, como venho falando desde o início da época, sobretudo dos jogadores que não há. Não há, por exemplo, um Javi Garcia ou um Ramíres, gente com caraterísticas para aguentar um meio-campo a dois, imagem de marca do 4x4x2 de Jesus desde sempre. Mesmo gastando o que gastou, o Benfica não foi capaz de encontrar dois médios capazes de aguentar o sistema predileto do seu treinador. E este levou meia época a mudar o sistema (para o 3x4x3) para responder a essa lacuna. Foi muito por aí também que se explicou o fracasso de 2020/21.