Muitos génios, pouco coletivo
Nunca a seleção de Portugal terá tido tão bons jogadores. E no entanto o jogo coletivo não aparece. A razão não é só a omnipresença de Ronaldo ou a falta de outra ideia por parte do treinador.
Não sei se alguma vez o disse em público, mas Luíz Felipe Scolari era absolutamente resistente à ideia de fazer jogar em simultâneo Cristiano Ronaldo e Quaresma. Sinceramente, acho esta ideia meio tonta e alinho mais com os que defendem que o mais difícil é compatibilizar dois maus jogadores, não dois génios. Mas a raiz do pensamento que, em cinco anos e meio, levou o treinador brasileiro a iniciar apenas sete partidas com os dois no onze é compreensível: uma equipa faz-se de um fluxo de jogo coletivo que dois jogadores tão extraordinários mas sempre mais propensos a pensar o futebol de forma individual podem interromper. Uma das razões para o défice de rendimento da seleção de Portugal, face ao conjunto de excelentes jogadores que acumula, é essa: na raiz da construção do jogo da equipa, há sempre excesso de individual e falta de coletivo.
É aqui que os fanáticos do igualitarismo rejubilam. “Pois, estás a ver, o problema é o Ronaldo”, vociferam. “Anda tudo preocupado com os recordes do Ronaldo, mas ele devia era andar ali a amargar como os outros”, completam. Ora, lamento ter de vos dizer que acho que estão errados. Se eu tenho o Ronaldo, ou o Messi, ou o Maradona, não vou banalizá-los e fazer deles jogadores comuns. Se tenho acesso ao Van Gogh não lhe digo que isso de pintar quadros é uma mania de vedeta e que o que ele tem é de pintar os muros do quintal , tudo da mesma cor e sem texturas. Ter um jogador excecional é uma bênção, como se viu, por exemplo, na Argentina de 1986, campeã do Mundo com uma equipa da qual se recorda o génio de Diego Maradona, o vigor físico de Batista e pouco mais. No auge do maior que alguma vez vi jogar, havia uma história – os argentinos chamam-lhe “anecdota” – destinada a tentar apurar quem ganharia um jogo imaginário: onze Batistas ou onze Maradonas? Não há resposta possível, mas creio poder arriscar que aquela Argentina seria na mesma campeã sem Batista, porque médios possantes e fortes da marcação há-os por aí às carradas, mas não o teria sido sem Maradona.
E, no entanto, duvido quando me colocam pela frente a perspetiva de um onze de Maradonas. E para isso recordo a lição que Johan Cruijff me deu uma vez, numa entrevista improvisada no parque de estacionamento de Camp Nou: “a bola corre mais depressa do que o homem e ainda por cima não se cansa”. A base do futebol é o passe, não é a finta. O golo é o objetivo, mas a maneira mais segura de lá chegar é através da criação de um contexto coletivo capaz de favorecer as caraterísticas individuais dos nossos melhores jogadores. Era por isso que Cruijff também dizia que o futebol se joga com o cérebro. Querem um exemplo ridículo, de primeira classe? Se tenho um avançado-centro de 2,10m mas dificuldades evidentes a rodar ou a dominar a bola e a combinar, tenho de lhe fazer cruzamentos por alto e não passes a pedir tabelas. Este é um exemplo extremado, mas convenhamos que a realidade é sempre um pouco mais complexa e que as onze variáveis que um treinador escolhe para iniciar um jogo nos colocam sempre várias equações, que têm de ser equacionadas e pensadas de modo a saírem favorecidas. Ronaldo, como Maradona na Argentina de 1986, é a melhor coisa que aconteceu à seleção, mas não deixa de ser contagiado pelo contexto que é criado na equipa de que faz parte.
O primeiro engano em que caímos com frequência é o de facilitar quando julgamos a atual geração de jogadores portugueses como absolutamente excecional e partimos daí para achar que onze Maradonas têm de dar uma equipa soberba. Temos – como julgo que nunca tivemos na história do futebol português – vários jogadores excecionais do ponto de vista individual. Mas falta-nos o contexto coletivo – e sim, a sua criação tem de ser o papel do treinador, por mais que este tenha razão quando se queixa da falta de tempo para trabalhar. Muitos de vós lembram a fase de qualificação da primeira Liga das Nações, feita com brilhantismo e sem Ronaldo, para se centrarem na figura do capitão como se ele fosse uma espécie de eucalipto, que seca tudo o que lhe aparece à volta, mas creio que o problema não é esse. Não creio sequer que seja uma questão de egos ou vaidades, que nesse aspeto estamos no ponto: os jogadores da seleção de Portugal já têm o relevo suficiente no futebol europeu para não se encolherem nem se sentirem diminuídos e servis face à presença aglutinadora do CR7, não deixando de lhe reconhecer o relevo. O problema, creio eu, é mesmo futebolístico e parte da raiz do pensamento de Scolari e Cruijff – e nunca pensei que os dois pudessem partilhar algo em termos filosóficos, mas deixei que os dedos me guiassem pelo teclado até aqui chegar e me surpreender até a mim.
O problema da seleção de Portugal é que tem muita gente a pensar o jogo de forma individual e não tem gente suficiente a pensar o jogo de forma coletiva. E atenção: não estou a falar de correr, defender e ser solidário, embora isso também seja, naturalmente, fundamental. Estou a falar de jogo atacante, mesmo. De mais passe. De mais tabela. Isto não tem a ver com a tática, a estratégia ou até com a aparentemente irresolúvel questão em torno da posição de Ronaldo. Tem a ver com o DNA dos jogadores escolhidos e ajuda a explicar, por exemplo, por que é que João Moutinho continua na seleção – e há-de continuar enquanto conseguir correr. Ele é o jogador mais coletivo do futebol português desde Paulo Sousa e, antes dele, de Jaime Pacheco. Todos interiorizaram outra lição, esta de Gentil Cardoso, figura folclórica do futebol brasileiro que chegou a trabalhar em Portugal, no Sporting, tendo ali iniciado a época em que os leões venceram a Taça das Taças: “Se a bola é feita de couro, se o couro vem da vaca, se a vaca come erva, então façam girar a bola na relva, que é aí que ela se sente bem”.