Mudar ao meio para segurar as pontas
O empate com a França assentou em dois gémeos tão diferentes como Moutinho e Renato, bem secundados por Danilo e Palhinha. Mas deixa alguns incómodos, que Santos tem de resolver para ser feliz.
Portugal apoiou nas mudanças ao meio a capacidade para se equiparar (2-2) à França no fecho do Grupo F e não depender do resultado do Alemanha-Hungria para garantir a vaga nos oitavos-de-final do Euro’2020, que vai disputar no domingo contra a Bélgica, a primeira equipa do ranking mundial. A entrada no onze de dois “gémeos” tão diferentes como João Moutinho e Renato Sanches deu à equipa mais critério na posse e na ocupação de espaços, além de uma crescente intensidade, tanto com como sem bola, e foi a chave para que a equipa conseguisse segurar as pontas que tantos problemas lhe tinham causado no jogo com a Alemanha. O desafio podia ter corrido melhor, como podia ter corrido pior – a seleção nacional podia ter ganho, como podia ter perdido. Mas feitas as contas, sai do “grupo da morte” com uma imagem bem diferente da que deixara há cinco anos, quando também se apurou como um dos melhores terceiros e depois ganhou a prova.
Desta vez, tendo por parceiros de grupo os dois últimos campeões mundiais, Portugal fez mais um ponto do que em 2016 – quando também tinha sido terceiro, atrás da Hungria e da Islândia. Foi a única equipa a ganhar à surpreendente Hungria, mas também a única a perder com uma estranha Alemanha. Foi o melhor dos terceiros e desmistificou a imagem de equipa defensiva que se vai cultivando em casa, chegando ao final desta primeira fase com o segundo ataque mais concretizador da competição, com sete golos, tantos como a Bélgica e a Itália e apenas um a menos do que os Países Baixos. Nem tudo foram rosas, porém: os seis golos sofridos são disso prova. Mas mesmo mantendo a ideia de jogo mais assente no ataque rápido e no contra-ataque, que o leva a preferir atacantes velozes a atacantes virtuosos, Fernando Santos parece ter corrigido a tempo aquilo que estava pior. Enquanto durou, nas exigentes condições atmosféricas em que decorreu o jogo de ontem, Moutinho deu ao onze maior capacidade para ter bola – e já se sabe que se se tem a bola não se corre tanto perigo nem tem de se defender tanto –, porque raramente a entrega mal, e uma superior leitura dos espaços no momento defensivo. Já Renato Sanches, com o seu jogo feito de repelões, de pára-arranca constante, foi quem mais problemas causou na organização defensiva francesa, sempre incapaz de adivinhar o que ele ia fazer a seguir ou de se opor a cada mudança de velocidade que ele metia no relvado.
Não podiam ser mais diferentes estes dois “gémeos” do meio-campo português, ontem bem secundados por Danilo na primeira parte e, sobretudo, pelo vigoroso Palhinha na segunda. Moutinho pode já não correr muito, mas tem a habilidade tática para estar quase sempre no sítio certo. Renato pode não ser um portento de leitura de jogo ou de capacidade de decisão ou definição, mas compensa isso com vigor e uma ocupação de espaços tão vasta que baralha os mapas de calor da UEFA. A diferença para o meio-campo mais passivo que se vira no jogo contra a Alemanha foi evidente e nem se revelou tanto no total de faltas cometidas como na capacidade para mandar no setor, perante uma França que ali tinha Kanté e Pogba, mas desviava Tolisso para a direita e baixava um pouco Griezmann para fazer de terceiro médio, de forma a abrir as diagonais para Mbappé e até Benzema. A equipa portuguesa funcionou muito melhor e se há aspetos a lamentar eles passam primeiro pela necessidade de uma escolha exclusiva entre um perfil mais gregário mas pouco brilhante e outro, mais virtuoso mas desligado. Uma boa equipa de Portugal precisa de ser intensa e pressionante, mas tem também de ser capaz de aproveitar o talento de gente como Bruno Fernandes – ontem suplente e depois utilizado como extremo-direito, durante a ponta final da partida – ou até Bernardo Silva, que fez uma primeira parte interessante mas continua a ser no ambiente-seleção a sombra do jogador que é no Manchester City. Isto já para não falar de João Félix ou Pedro Gonçalves, que ainda nem jogaram neste Europeu.
Portugal voltou a abordar o jogo em 4x1x4x1, mas desta vez com os motores a funcionar. É certo que a França não estava dependente do resultado de ontem, mas a verdade é que foram os portugueses a assegurar a iniciativa durante mais tempo logo desde o início. E o jogo ia decorrendo com ligeira superioridade lusitana e aceitação gaulesa até ao momento do penalti de Lloris sobre Danilo. Com o golo de Ronaldo, na conversão, que também foi a primeira ocasião de perigo verdadeiro do jogo, a França despertou. Pogba parecia ter a capacidade de adivinhar o momento exato em que os seus atacantes iniciavam a corrida para lhes meter a bola na profundidade e isso levou aos dois golos de Benzema, o primeiro depois de um penalti muito discutível de Semedo sobre Mbappé e o segundo numa diagonal perfeita a ganhar as costas da defesa nacional. Face à momentânea vantagem húngara em Munique, durante largos minutos, Portugal esteve fora do Europeu – tal como já tinha sucedido em 2016, de resto. A 30 minutos do final, uma mão imprudente de Koundé na área deu a Ronaldo o segundo penalti da noite e um empate que chegava para a qualificação, mas a quebra do meio-campo nacional colocou o jogo em risco. Quando, aos 69’, Pogba obrigou Rui Patrício a uma defesa monumental, em remate de meia distância, a seleção tinha nove jogadores dentro da área. Este afundamento, resultado tanto do nervosismo como da quebra física, era um inimigo dos objetivos nacionais e, como Fernando Santos acabou por ter razão acerca da réplica húngara à Alemanha, deixava a qualificação em perigo.
O selecionador refrescou então a direita com Bruno Fernandes em vez de Bernardo Silva – era preciso defender Rabiot, entretanto lateral esquerdo improvisado por Deschamps – e o meio-campo com Rúben Neves no lugar de Moutinho. Associado ao facto de, com o empate, já ser outra vez primeira do grupo, isso já ia chegando para segurar uma França mais cómoda no jogo e na classificação. Santos bem pode dizer que não passava para o relvado informação acerca do resultado em Munique, mas cada golo da Hungria era anunciado tanto pela ovação dos muitos húngaros presentes na Puskás Arena como até pelo placard do estádio, pelo que a tensão era inevitável. Era impossível ficar indiferente. No fim salvou-se o objetivo, mas o jogo deixou muito assunto para reflexão. E a Bélgica já vem aí, com mais dois dias de repouso, para mais um jogo no calor de Sevilha.