Mourinho e o princípio de Peter
A AS Roma é o gigante com fome que serve na perfeição a Mourinho para escapar ao seu princípio de Peter e destacar a sua faceta de "serial winner". Agora, é não deixar que o mercado estrague tudo.
Ao ver Tammy Abraham correr ontem, campo acima-campo abaixo, sem ter muita bola para jogar, fez-se um pouco de luz na minha cabeça sobre o mistério-Mourinho. Depois, é verdade que em noites de glória todas as equipas aparentam união, mas a festa quase juvenil feita pelos jogadores da AS Roma na sequência da conquista da UEFA Conference League, em Tirana, foi mais um clarão. O mais vencedor dos treinadores portugueses de todos os tempos sujeita-se, como todos nós, ao “princípio de Peter”. O de Mourinho está na fome de ganhar dos seus jogadores e da mesma forma que o leva a ter problemas sempre que começa a subir e lhe calham grupos mais consagrados, permite-lhe reencontrar-se com a sua essência se dá um passo atrás, como fez agora com a AS Roma. A vitória de ontem, somada à demonstração de caráter no 3-0 ao Torino, a garantir que a equipa fechava a Serie A em posição de acesso à Liga Europa, fazem-me acreditar que esta equipa tem futuro. Assim Mourinho e os Friedkin acertem no momento de a reforçar.
Mourinho explicou a teoria logo no primeiro de muitos livros que lhe refletem o sucesso de duas décadas, o “José Mourinho” (Prime Books, 2003), escrito pelo seu conterrâneo e amigo Luís Lourenço. “Requisitei o Diogo Luís, o Geraldo e o Nuno Abreu, ‘jogadores pobres’, que ganhavam 150 contos [750 euros] por mês. Jovens desejosos de treinar com as estrelas, com níveis de competitividade e motivação elevadíssimos, de tal forma que passados alguns dias foram logo apelidados de ‘irmãos Metralha’”, contou o técnico. A teoria repetiu-se depois. No FC Porto com a incorporação do grupo de Leiria – Nuno Valente, Derlei e Tiago –, de Paulo Ferreira ou até de Maniche, rejeitado do Benfica. No Chelsea com um grupo que sentia o peso de receber um treinador campeão europeu e de meio século sem ganhar a Premier League ou qualquer outra coisa que se visse. No Inter de Milão com Milito, Sneijder, Pandev, Thaigo Motta ou Lúcio, mas também com gente habituada a ganhar sem perder o caráter necessário, como Eto’o. Só que à medida que ia subindo, que lhe foi dada a herança de Alex Ferguson, que chegou a um Tottenham que é em si um mistério, Mourinho ia encontrando grupos menos dados às suas necessidades. Mais gente de barriga cheia, mais jogadores ricos, menos vontade de fazer piscinas e de dar tudo pela equipa sem expectativa de brilho pessoal, como fez Abraham em Tirana. E atenção que Abraham é campeão europeu, mas não fez um minuto pelo Chelsea na fase a eliminar da última Liga dos Campeões.
Não quero que daqui resulte a ideia de que o gregarismo supera a arte, que o trabalho vale mais que o talento, que é preferível transpiração a inspiração. Mas, como explicava o romeno Chivu, ex-jogador da AS Roma que depois esteve com Mourinho no Inter, na Gazzetta dello Sport de hoje, “trabalhando a força mental, o que te faz superar os limites e os momentos de dificuldade que enfrentas num jogo ou numa época”, “Mourinho consegue convencer-te de que és forte”. Qual é o problema? Acrescento-o eu: se já estás convencido, não te superas. Não vais além dos limites. E não ganhas. É por isso que, volta-não-volta, o treinador de Setúbal se espalha ao comprido e precisa de encontrar nas profundezas de si mesmo a força para recomeçar mais abaixo, como fez agora com a AS Roma. É por isso que sempre que lhe dão fundos mais ou menos ilimitados, como aconteceu em Manchester (380 milhões de euros em aquisições nos primeiros dois anos), a coisa corre mal, se ele não resiste à tentação de ir em busca de gente cheia de medalhas no peito. Mas nada disso chega para esconder que José Mourinho um pleno notável de vitórias em finais europeias – cinco taças em cinco finais, entre FC Porto, Inter, Manchester United e AS Roma. Ou que tinha sido ele a conquistar a última competição europeia para uma equipa italiana, a Liga dos Campeões de 2010, pelo Inter de Milão.
Como ganhou as suas cinco finais ao longo de 19 anos – a primeira foi a Taça UEFA de 2003, pelo FC Porto –, o português forma, desde ontem, com Alex Ferguson e Giovanni Trapattoni, uma tripla de treinadores que venceram decisões europeias em três décadas diferentes. “Isso faz-me sentir velho”, brincou Mourinho depois do jogo e de voltar a soltar lágrimas de alegria como as que se lhe viram após a qualificação para esta decisão. Mas também ele deve ser capaz de resistir a olhar para trás, para um passado com 26 troféus conquistados, e focar-se no que aí vem. A AS Roma é um gigante sem um palmarés correspondente, com apenas três títulos de campeã italiana, em 1942, 1983 e 2001. Tanto ou mais que de vitórias, a história do clube faz-se de falhanços épicos, como a final da Taça dos Campeões de 1984 – derrota nos penaltis contra o Liverpool FC no Olímpico – ou o trambolhão contra o despromovido Lecce no mesmo local, na penúltima jornada da Série A de 1986, quando já se festejavam os novos campeões. O que Mourinho – e Tiago Pinto – tem de fazer é juntar essa faceta de “serial winner” do treinador à fome de ganhar do povo romano. E não deixar que o mercado que aí vem estrague tudo. Porque muitas vezes, mais é menos. É isso que nos diz o “princípio de Peter”.
Excelente texto 👏 Compreendo os muitos críticos de Mourinho em Portugal, sua forma de jogar etc ... Mas quando ganha também é preciso dar mérito mesmo que seja uma Conference League. Abraço
A qualidade de jogo de Mourinho ao nível da série A tem vindo a melhorar . Ontem foi mais uma demonstração de promover o resultado em vez do processo . Melhor que ninguém Mourinho sabe como ganhar finais . E a final de ontem era das mais importantes da história da Roma e Mourinho sabia o . Esta vitória pode sobretudo mudar mentalidades no clube bem como uma mudança de paradigma de um clube que estava morto há alguns anos . Aguardaremos os próximos desenvolvimentos , mas com uns retoques no plantel com jogadores com a mentalidade certa , Mourinho pode fazer ainda mais ! Será sempre um projeto de 3/4 anos , nunca menos que isso , mas ganhar uma competição europeia não é para todos , mesmo sendo ela de segundo plano !