Mora e o produto acabado
Os 70 milhões de euros da cláusula de rescisão de Mora podem ser atrativos para os tubarões, mas basta olhar para a primeira encarnação do jogador (JVP) para ver que a saída agora seria precipitada.

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Rodrigo Mora fez 18 anos e continua a marcar sempre o mesmo golo, uma espécie de “Dia da Marmota” que ele, na perspetiva do executante, ainda tem a humildade de atribuir à “sorte”. O golaço ao Boavista, a dançar à frente de adversários mais corpulentos e pesados e, por isso mesmo, com maiores dificuldades em seguir o ritmo a que ele vai ziguezagueando, ora para a direita, ora para a esquerda, abusando de um centro de gravidade mais baixo antes de meter a bola ao ângulo mais longínquo com uma precisão invejável, trouxe “vibes” de João Pinto, o JVP que nasceu no Bessa antes de se consagrar no Benfica, no Sporting e na seleção nacional. E a recente renovação de contrato de Mora, aliada às notícias que dizem que as intenções dos dirigentes do FC Porto são de fazer dele a referência em torno da qual tencionam construir um plantel capaz de preencher as ambições do clube, recordam a precipitação que foi a saída desse mesmo João Pinto para o Atlético Madrid, quando só tinha 18 anos e quatro meses. O futebol mudou muito desde esse final de 1989, é verdade. Mas seria má ideia para Mora pensar já na exportação do seu talento. Até porque me parece que ele ainda não é um produto absolutamente acabado.
Os números de Mora são notáveis para uma primeira época na elite. Em 31 jogos pela equipa principal do FC Porto, 18 dos quais como titular, fez nove golos e quatro assistências, tendo por isso impacto direto em 13 finalizações bem-sucedidas. É certo que joga noutra posição, mais por dentro do campo – e cada vez mais é por dentro do campo que se fazem os golos e os passes-chave –, mas tem até um impacto superior ao de Quenda, menino da mesma idade, que com ele jogou o Europeu de sub17, no ano passado, e que com três golos e seis assistências em 52 jogos pelo Sporting andou a preencher as manchetes durante a primeira metade desta época. Quenda, aliás, já teve a felicidade de ser convocado e depois ignorado por Roberto Martínez nos jogos em que foi de excursão com a seleção. João Pinto, por exemplo, já tinha ganho o primeiro dos seus dois títulos de campeão mundial de sub20, mas também ainda não era internacional A e somara apenas 19 jogos pelo Boavista – com seis golos – quando Valentim Loureiro acertou com Jesus Gil y Gil a sua passagem para o Atlético Madrid, a meio da época de 1989/90. Em Espanha, onde era suposto ter a condução tutelar de Paulo Futre, à data a estrela suprema da equipa Colchonera, não chegou a estrear-se pela formação principal. Há-de ter enriquecido a experiência, a capacidade para lidar com o desconforto e as situações desfavoráveis, porque até participou na descida de divisão (da II Liga para a II Divisão B) da equipa B dos madrilenos, mas atrasou em ano e meio a sua afirmação na elite, que na verdade só começou quando ele voltou ao Bessa, a poucos dias de fazer 20 anos, no Verão de 1991.
O futebol é hoje muito diferente. Começa por ser diferente nas condições de que beneficiam os jogadores em Portugal, naquilo que é o mercado. Há 30 anos, antes de se suspeitar sequer que ia haver algo a que chamaríamos globalização, Portugal não tinha a visibilidade que tem hoje, o que naturalmente se refletia num mercado menos atento – e, se há menos gente a ver, por um lado torna-se evidente que quem vê tem logo mais hipóteses de se sair bem na corrida, enquanto que por outro, por falta de procura, quem está (e quem fica) beneficia logo de condições radicalmente inferiores às de quem vai. Eram poucos os portugueses em clubes estrangeiros. No último jogo da seleção nacional antes da transferência de João Pinto para o Atlético Madrid, um empate (0-0) com a Checoslováquia, nas Antas, em Novembro de 1989, já sem chances de nos apurarmos para o Mundial de 1990, participaram cinco jogadores do Benfica, dois do FC Porto, um do Sporting, do Boavista, do Vitória FC, do Beira Mar e do Estrela da Amadora e ainda Rui Barros, da Juventus. Na estreia de João Pinto pela seleção, um jogo particular que antecedia a última hipótese de ainda lutarmos pela presença no Europeu de 1992, mais um empate, desta vez no Luxemburgo (1-1), em Outubro de 1991, jogaram cinco elementos do Sporting, três do FC Porto, do Benfica e do Boavista e ainda Rui Barros, já no AS Mónaco, e Futre, do Atlético Madrid. Se Mora estiver, como se impõe, na lista que Martínez vai elaborar na quinta-feira para as partidas da Liga das Nações, em Junho, corre risco de ser um dos poucos que ainda ali aparece em representação de um emblema português. Nos 16 que jogaram a última partida da seleção, o 5-2 (após prolongamento) à Dinamarca, em Março, só Diogo Costa (FC Porto), Gonçalo Inácio e Trincão (Sporting) surgiram em representação da nossa Liga.
A normalização da emigração vem, por um lado, desdramatizar os efeitos perniciosos de uma mudança tão radical em tão tenra idade. As maiores equipas – e até as nossas... – são hoje multinacionais onde as origens contam pouco. Os jogadores de elite estão tão protegidos por estruturas profissionais, sejam as dos clubes que os contratam ou até as suas, pessoais, que sentem cada vez menos este tipo de transições. Por outro lado, parece-me evidente que o contexto conta muito na afirmação destes jovens talentos. Mesmo tendo em conta que ele vai ficar emprestado por um ano, achei precipitado o acerto tão prematuro da transferência de Quenda do Sporting para o Chelsea, há um par de meses, porque me parece que, sendo o jogador tão jovem (tinha ainda 17 anos e vivia o sonho que é jogar num grande em Portugal), não haveria pressão da sua parte para sair já. Ou que, estando na calha a saída de Gyökeres por um camião de dinheiro, no Verão, também não devia haver grande pressão financeira sobre o clube, a forçar uma venda tão apressada do passe da sua mais jovem estrela. E, por fim, porque acredito que Quenda – tal como Rodrigo Mora, de resto – ainda não é, não pode ser, o produto acabado.
Que há muitas semelhanças na ginga de Mora com a do jovem João Pinto, isso é inegável. Que este golo-padrão que ele tem feito é quase a reprodução de um golo à João Pinto também não restam dúvidas. Ora comparem o que Mora fez ao Boavista, aqui, com o segundo de JVP nos 6-3, aqui, e digam lá se a mudança de direção não é idêntica, até na forma como ambos deixam os adversários deitados na relva... Mas ainda não vejo, mesmo na versão aprimorada que Mora nos tem mostrado ultimamente, a capacidade que tinha o João Pinto adolescente para resolver jogos no espaço reduzido da área, por exemplo. Para ser avançado de área além de um número 10 com golo. Como não o vi ser decisivo em nenhum dos jogos grandes em que participou nesta segunda metade da temporada, o período máximo da sua afirmação como jovem craque. Fez um remate e um passe para finalização, perdendo os três duelos individuais e os dois dribles tentados na Taça da Liga, contra o Sporting, em Janeiro. Depois, em Fevereiro, fez quatro remates, todos desenquadrados, sem passes-chave e ganhando só três de 13 duelos individuais na receção ao Sporting, para o campeonato. E fez dois remates (um na baliza), mais uma vez sem passes para finalização, ganhando quatro de onze duelos frente ao Benfica, em Abril. Há aqui tanto potencial como há espaço para melhorar naqueles momentos em que cresce a dificuldade. E a diferença entre poder desenvolver esse potencial imenso no Dragão e ser já levado a experimentar outros cenários é que, além de estar em casa, por cá tem mais jogos menos complicados para lhe servir de balanço. Idealmente, Mora devia ficar no FC Porto pelo menos mais um ano. A questão vai ser a de entendermos se o FC Porto tem condições para lhe permitir isso.