Mitos populares sobre a seleção
Ontem, rejubilaram os que dizem que esta seleção seria boa era sem Ronaldo. E calaram-se os que dizem que Santos não sabe meter a equipa a jogar. Mas a verdadeira questão nem é essa.
O conforto na vitória de Portugal contra o Azerbaijão – sim, eu sei que era só o Azerbaijão… – veio dar força a um mito popular, mas ao mesmo tempo contrariar um outro. A excelente exibição da equipa nacional, a trocar a bola ao primeiro e segundo toque, com rapidez e uma agilidade coletiva que raramente se lhe vê e com destaque assumido por craques que têm andado tão apagados, como Bruno Fernandes e Bernardo Silva, veio reforçar a convicção dos que dizem que é Cristiano Ronaldo quem os atrapalha, mas ao mesmo tempo destruiu a ideia dos que alegam que é Fernando Santos que não tem capacidade para colocar os rapazes a jogar à bola – esses, ontem, estiveram a ver as novelas. No fundo, nenhum dos dois mitos faz algum sentido: servem apenas para entreter a malta, precisamente quando não há novelas ou quando não há ninguém a insurgir-se num debate sobre “futebol”. E já vou arranjar uma metáfora meio idiota para o explicar.
Imaginem que em vossa casa só há quatro garfos e quatro facas. Uma noite, no entanto, um casal que convidam para jantar traz um filho e o total de comensais passa a ser de cinco. Um de vós vai ter de comer com as mãos. Quer isto dizer que não sabe utilizar os talheres? Não. Só que não havia talheres suficientes. Assim está a equipa nacional. Podemos sempre debater se o método usado até aqui convém a todos os jogadores – e eu até vou mais longe e digo que não convém a nenhuns, mas que é a única maneira de colocar todos à mesa, como já expliquei aqui. Mas não é uma vitória confortável contra um Azerbaijão que está a sair pior do que a encomenda que nos vai dizer que, afinal, o melhor mesmo é abdicar do melhor finalizador do futebol mundial. O jogo com o Azerbaijão pode ser visto de mais maneiras do que as duas com que comecei este artigo. Uma delas é o reforço da vantagem que é a inclusão de mais um médio. Outra é a constatação da importância que tem para um jogo mais coletivo a inclusão de um ponta-de-lança que sirva de referência para ligar o jogo interior. E não, estas não são mitos.
Fernando Santos, que a generalidade dos observadores acusa de ser medroso e de pensar só em defender, fez duas alterações em relação ao jogo com a República da Irlanda. Como tinha perdido Cristiano Ronaldo, chamou André Silva – e já parece embirração, não colocar junta a que foi a dupla mais goleadora da Europa na época passada, se considerarmos apenas pares da mesma nacionalidade. E procedeu ainda à troca de Rafa, um extremo veloz, atacante, portanto, por João Moutinho, um médio contemporizador. Santos fez, portanto, um onze que os seus detratores considerarão “mais defensivo”. “Para que é que é preciso mais um médio quando o adversário é o Azerbaijão?”, perguntarão. Pois bem, a resposta, que eu já tinha dado aqui, antes mesmo de a pergunta ter sido feita, ficou bem à vista de todos. A inclusão de mais um médio, sobretudo se esse médio for João Moutinho, que entrega sempre redondo e limpinho, é para a equipa jogar de forma coletiva, algo cuja falta é precisamente aquilo de que a maior parte dos observadores se queixa. Se, contra a Rep. Irlanda, Bruno Fernandes e Bernardo Silva, que jogaram como médios num 4x3x3, estavam tão longe, lá na frente, que deixavam sempre Palhinha só, sobretudo nos duelos pelas segundas bolas, o mais defensivo dos médios nacionais já teve ontem companhia e Portugal assegurou que mantinha a bola e que podia assentar a posse em cima disso.
Por outro lado, a entrada de André Silva deu finalmente à equipa a referência central de que ela precisa para ligar o jogo. De que Bruno Fernandes precisa para poder mandar no meio-campo, tendo à frente o apoio posicional que lhe falta quando a equipa joga com avançados mais reativos – como foi o caso do trio utilizado frente aos irlandeses. À frente do general do meio-campo ofensivo, ontem, estavam duas referências de ligação: Bernardo Silva, sobretudo depois do golo que marcou, quando passou a procurar mais o espaço central (até aí estivera mais na linha, para permitir as diagonais de Cancelo para dentro), e André Silva. A questão da presença de André Silva no onze da seleção não se prende apenas com os golos que marca ou perde – e ele até marcou nos dois jogos que iniciou desta semana de seleção. A questão da presença de André Silva no onze da seleção tem a ver sobretudo com a necessidade que a equipa tem dessa referência para poder ligar o seu jogo e com a certeza absoluta de que essa referência não pode ser Cristiano Ronaldo, cujas caraterísticas o levam a fugir sempre dali. E, repito, não é inteligente ter Ronaldo e usá-lo de uma forma que contraria as caraterísticas que fazem dele um dos melhores de sempre: é como ter van Gogh à disposição e mandá-lo pintar paredes, mas tudo da mesma cor. Se calhar ele até saberia fazê-lo, mas tornar-se-ia banal.
Gostaram da seleção ontem? Eu gostei. Mas não creio que a equipa tenha jogado bem por não ter tido Ronaldo. A equipa jogou melhor porque teve as pedras arrumadas de forma mais correta e por ter respeitado os princípios básicos de um jogo que é coletivo. Tudo se perderá quando voltar Ronaldo? Depende. Não creio que haja necessidade disso, mas vai ser preciso fazer escolhas, necessariamente diferentes das que se fizeram em dias nos quais a equipa jogou pior. O problema é que para ter lugar para Ronaldo e Jota – e atenção, estamos a falar dos melhores marcadores nacionais desta fase de qualificação – não há lugar para Bernardo Silva e Bruno Fernandes – os dois melhores no jogo de ontem. Porque numa equipa só jogam onze e, além do guarda-redes e dos quatro defesas, alguém tem formar o par de médios e alguém tem de fazer o papel de avançado-referência que facilite a ligação do jogo da equipa. Com os quatro mosqueteiros já são doze…