Messi e o fair-play financeiro
Nada é tão importante na transferência de Messi como o fair-play financeiro. O que se pode fazer pela concorrência e por que é que isso nunca nos preocupou com o Real Madrid dos Galácticos?
A mudança de Messi do FC Barcelona para o Paris Saint-Germain é um momento histórico. É-o pela sua dimensão fraturante, por levar um dos melhores jogadores da história a sair do recato do Camp Nou, onde passara toda a sua carreira; pelas lágrimas que o argentino chorou na despedida; pelas vitórias do dinheiro do Catar no desafio de montar uma equipa de sonho em Paris e da Liga Francesa na capacidade para roubar mais um jogador de classe Mundial à Liga espanhola; mas também por finalmente poder colocar o Mundo do futebol a refletir sobre os caminhos totalmente desregulados que está a trilhar. E quando digo refletir não é para condenar, mas sim para regulamentar. Porque por mais ciclópica que seja essa tarefa, ela tem de ser encarada.
O FC Barcelona e a Liga espanhola aparecem no lote de derrotados desta novela. Os catalães chegaram ao desmando total com Bartomeu e soube-se recentemente que estavam a gastar 110 por cento da faturação em salários – quando o limite imposto pela Liga espanhola é de 70 por cento. Joan Laporta, o atual presidente, pode agora culpar o antecessor, mas teve tempo mais do que suficiente para corrigir as coisas e, nesse tempo, o que fez foi agravar a situação: não renovou com Messi antes de o contrato terminar, mas contratou Depay, Eric García, Agüero… Em resultado disso, como a norma da Liga espanhola é preventiva e não punitiva – como a da UEFA – não só está agora impedido de registar os contratos dos recém-chegados como, em função de Messi ter visto o contrato expirar e se ter tornado jogador-livre, não poderia igualmente renovar com ele, nem que o argentino se oferecesse para jogar de borla.
Das motivações de Messi já falei antes (aqui e aqui). Basicamente, por ser um tipo ao mesmo tempo tímido e de certa forma acomodado, quis sair quando se sentiu vilipendiado – quando a direção de Bartomeu fez publicar o contrato milionário que ele tinha, pretendendo torná-lo responsável moral da situação caótica em que o clube estava – mas agora queria ficar. Não pôde fazê-lo porque a Liga espanhola já teve de se ver a braços com situações próximas de falência vezes mais do que suficientes para instalar regras rigorosas de controlo de gastos nos clubes que a disputam. Podemos achar o que quisermos do acordo com a CVC Capital Partners e até olhar para ele como forma pouco honesta de combater o Real Madrid e o FC Barcelona na questão da Superliga – aliás, todo este “affaire Messi” nasce no antagonismo entre a Liga e os seus grandes – mas Javier Tebas, presidente do organismo, não podia agora fechar os olhos à situação do Barça e depois impedir um Alavés ou um Getafe de se endividarem para evitarem descer de divisão. Ainda assim, a integridade nest caso teve um custo: depois de perder Ronaldo e Neymar, a Liga espanhola perdeu também Messi. Começa a ser difícil lutar com as outras Big Five na captação de receita no estrangeiro.
A grande questão, à qual Nasse al-Khelaifi poderá responder hoje, na apresentação de Messi, é ainda assim outra: como é que o Paris Saint-Germain conseguiu montar esta operação? E para esta pergunta há duas respostas. A primeira – onde foram buscar o dinheiro? – é fácil de atingir. O estado do Catar financia e, tal como expliquei aqui, há neste momento três “clubes-estado” a beneficiar de bolsos sem fundo: o PSG com os milhões do Catar, o Manchester City com os milhões do Abu Dhabi e o Chelsea com os milhões de Abramovich, que não é um país mas tem reservas ilimitadas também. Portanto, dinheiro ali não falta e risco de insolvência só haveria se, por alguma razão que neste momento não se vê nem se antecipa, os financiadores resolvessem retirar-se. A segunda é mais difícil, mas também compreensível, e passa pela pergunta: como é que, já tendo contratado Donnarumma, Hakimi, Wijnaldum, Sérgio Ramos e agora Messi, mantendo Neymar, Mbappé, Di Maria, Drexler, Navas, Icardi e muitos outros, o PSG não rebenta no fair-play financeiro? Não será isto contrário ao espírito do desporto, que devia ser o de concorrência e equilíbrio e não o de concentração dos melhores meios num só clube?
A mim espantam-me as duas coisas, ainda que me apeteça denunciar o racismo dos que hoje se escandalizam com a concentração de craques nas mãos morenas de Al-Khelaifi mas sempre acharam piada ao conceito dos “Galácticos” montado pelo imaculado, pálido e tradicionalista Real Madrid. É a mesma coisa. O atropelo ao espírito desportivo é igual. O que aparentemente se terá passado neste caso é que a Liga Francesa – tal como a UEFA, de resto… – aligeirou as regras de fair-play financeiro por causa da pandemia. Como os clubes viram as receitas baixar drasticamente, houve quem tivesse decidido fechar os olhos por uns tempos, de modo a que não se verificasse a necessidade de rever tudo em baixa. Os responsáveis do PSG foram ao mesmo tempo espertos e viram neste fechar de olhos a oportunidade para subirem bastante a despesa e procurarem o sonho cuja concretização legitima o investimento – a Liga dos Campeões. Poderão cumprir a norma, mesmo que lhe contrariem o espírito. E depois, quando voltar o escrutínio e for preciso concretizar, ao que se diz, 180 milhões de euros em vendas, logo se vê o que se fará – havendo a certeza de que até lá o dinheiro não faltará, porque a liquidez é grande.
Juan Branco, um advogado espanhol, célebre por ter defendido, por exemplo, Julian Assange, já tentou impedir a concretização da mudança de Messi em nome da concorrência leal. Não se lhe afigura fácil a tarefa, porque tanto a Comissão Europeia como a própria UEFA tomaram em tempos a decisão de deixar essa regulamentação nas mãos das diversas Ligas nacionais – sendo que a UEFA intervém depois nos clubes apurados para as suas competições. Mas daqui resulta claro que a ideia do fair-play financeiro é imperfeita. Já tinha sido contestada por favorecer a eternização do “status quo” – um clube que queria investir durante uns anos para se chegar aios maioes não pode fazê-lo sem infringir as regras – e percebe-se agora que, por multiplicar os foros de discussão e as fontes de regulamentação, vem instaurar a concorrência desleal. E para isto o futebol ainda não encontrou resposta.