Maradona, o maior enganador de sempre
Jogar futebol é enganar. É enganar com desplante. Com desfaçatez e descaramento. E Diego Maradona foi o maior enganador que alguma vez pisou um relvado.
Digam o que disserem, jogar futebol é enganar. É enganar com desplante. Com desfaçatez e descaramento. O que é driblar? É fingir que se vai por um lado e depois sair com a bola pelo outro. Mais: é sentar o adversário antes de passar com a bola – e essa é a parte do desplante. O que mais valorizamos num penalti? O jogador que tem uma taxa de acerto mais elevada? Ou aquele que faz um “Panenka”, que engana o guarda-redes, que espera que ele caia para um dos lados e depois não se limita a meter-lhe a bola pelo outro – fá-la entrar, picada, pelo sítio onde ele estava, assim como quem diz, “quem é que te mandou, sequer, tentar?” Ser grande, depois, não é enganar com coisas singelas, como uma faltinha aqui, um penalti acolá. E, assim sendo, o maior enganador de todos os tempos foi Diego Maradona. Enganava como ninguém e mostrou-o naquele célebre jogo contra a Inglaterra, no Mundial de 1986. Enganou o árbitro no lance do primeiro golo, o da “Mão de Deus”, mas depois, para que não ficassem dúvidas acerca da sua grandiosidade, enganou toda a equipa adversária, avançando em dribles sucessivos desde o seu próprio meio-campo até às redes de Shilton, para marcar o segundo.
Todos nos lembramos onde estávamos naquele dia 22 de Junho de 1986. Era domingo, eu tinha 16 anos e os meus pais arrastaram-me para um casamento, já nem me lembro de quem, mas também enganei a boda e os noivos para ver a forma como Maradona vingava a derrota da Argentina nas Malvinas, a caminho de uma proeza que nunca mais vi a ninguém, que foi ganhar um campeonato do Mundo sozinho. Perguntava muitas vezes isto a quem me dizia que não tinha sido bem assim, que o futebol é o pináculo dos desportos coletivos: conseguem dizer-me o nome de mais três ou quatro jogadores daquela seleção da Argentina? Há quem chegue a Valdano, sobretudo por causa da notoriedade que o antigo avançado conquistou depois, como treinador e, sobretudo, como comentador. Há quem lembre Burruchaga, que nem era mau jogador. Há quem se recorde de Batista, que tinha cabelo e barba à Cristo mas não era de dar a outra face – dava “pau” como poucos. E depois? Pumpido? Brown? Giusti? Olarticoechea? Cuciuffo? Enrique? Ruggieri? Esqueçam. Carlos Billardo, que ficou na história como um dos treinadores mais negativos de sempre, sabia bem a equipa que tinha. Restava-lhe apostar tudo em Maradona. E Maradona respondeu muitas vezes até à final – não foi só contra a Inglaterra que enganou.
O golo da mão de Deus levou muitos a criticar Maradona por falta de fair-play. Como pode o melhor de sempre fazer aquilo? Da mesma forma, a vida de excessos que levou, com drogas, álcool, jogo, associação à camorra, tudo o que eram defeitos, conduziu muita gente a negar-lhe o estatuto de referência, que uma referência tem de ser impoluta e não pode ser visto na companhia de mafiosos ou ditadores. Mas, caramba, Maradona passou a vida toda a ter de enganar para se safar. Enganou a pobreza, primeiro que tudo, em Villa Fiorito, o bairro de lata onde nasceu. Enganou depois os que o achavam ainda demasiado jovem, como Menotti, que não o levou ao Mundial de 1978, roubando-lhe assim o primeiro título de campeão. Enganou os caceteiros que o caçaram impiedosamente quando chegou a Espanha, entre eles o infame Goicoechea, que lhe provocou a primeira grande lesão, e com isso deu o primeiro grande grito de alerta que, depois, levou à mudança de imagem do futebol espanhol, liderada por um grupo de filósofos da bola, nos quais se incluía o seu amigo Valdano. Fugiu para Nápoles, onde encontrou uma massa adepta indefetível, e foi bandeira da luta do sul pobre contra o norte rico e industrial, marcando uma era entre a Juventus de Trapattoni e o Milan de Sacchi. Pelo meio, foi campeão de Itália e do Mundo, ganhou uma Taça UEFA e iniciou o declínio. Foi esse, o Maradona que estava prestes a cair do topo, o que se apresentou em Portugal, na primeira vez que o vi ao vivo. E até aí enganou – enganou os napolitanos, chegando atrasado, pesado e sem ritmo ao primeiro jogo da época; enganou o público, que lotou Alvalade para o ver, e só se mostrou, com o 16 nas costas, na ponta final da partida e para levar uma “cueca” de Douglas, ponto alto da eliminatória até à aposta com Ivkovic no desempate por penatis da segunda mão, no San Paolo.
Esse ano, de 1990, marcou a mudança em Maradona. Os excessos ficaram mais fortes do que ele. E em vez de enganar, passou a ser enganado. Foi enganado pelos napolitanos, que na meia-final do Mundial, no San Paolo a que Maradona chamava o quintal de casa, puxaram pela “azzurra” contra a “alviceleste”. “Diego nel cuore, Itália nei cori”, lia-se, na faixa que consumava a traição. “Diego no coração, Itália nos cânticos”. A Argentina ainda ganhou, mas caiu depois na final, contra a Alemanha, e Maradona perdia a oportunidade de voltar a ser campeão do Mundo, com uma equipa ainda mais fraca que a de 1986. Disparou em todas as direções, a começar pela FIFA, que considerava a origem de todos os males, mas a verdade é que estava a enganar-se a ele próprio, pois já tinha começado o declínio. Aos 30 anos. Ainda passou pelo Sevilha FC de Carlos Billardo, onde não foi mais do que mediano, e tentou o regresso, em casa, no Newell’s e, depois, no Boca Juniors, o clube do coração. Pelo meio, deu-se o anti-doping positivo no Mundial de 1994 e a retirada de mais um grande palco sem razões para sorrir.
Maradona, que morreu ontem, aos 60 anos, foi ainda treinador de clube e de seleção (a da Argentina), protagonista de cinema, séries, canções e ícone moderno da revolução cubana, a justificar o Che que tem tatuado no braço direito. Apesar de baixo e gordito, foi o melhor futebolista que alguma vez vi jogar, porque tinha tudo aquilo de que precisava: velocidade, resistência, força, técnica, e aquilo que mais falta faz a a quem quer vingar no jogo, que é a capacidade de o entender. E foi, também, o maior enganador de todos os que alguma vez pisaram um relvado. E sim, isto é um elogio.
“Maradó! Maradó!”