Manipulação, incompetência e falta de respeito
O recuo na presença de público é prova de manipulação do Governo, que conseguiu que fossem os clubes a recusar, mas também de incompetência do futebol e falta de respeito pelos adeptos.
A reversão da decisão de abrir a última jornada da Liga ao público, permitindo e voltando depois a proibir que os estádios tivessem 10 por cento da sua capacidade ocupada, pode ser mascarada de muitas maneiras mas é a clara confirmação de que da parte do Governo e eventualmente da FPF houve manipulação – ainda por cima mal feita – e que na Liga houve incompetência. Tudo somado, resulta numa convicção que mantenho: a de que só iríamos ter público na jornada de hoje e amanhã porque era preciso desenrascar a UEFA e de Nyon já tinham dito que sim senhores, mudavam a final da Champions para Portugal, mas tinha de ser com público nas bancadas. E isso é uma falta de respeito para com os adeptos portugueses.
Dos argumentos ontem utilizados pela direção da Liga para anunciar que agradecia mas não iria utilizar a benesse que lhe estava a ser dada pelo Governo, há um que não faz o mínimo sentido na minha cabeça – mas curiosamente foi aquele que mais foi papagueado no espaço público por presidentes que defendem que há muito devíamos ter público nos estádios. Não me entra que não possa haver público nos estádios porque isso iria desvirtuar a verdade da competição, porque só metade das equipas beneficiariam do apoio dos seus adeptos neste último dia de prova. Isto dito por gente que subscreve a tese de que o Sporting só foi campeão porque não teve lá os adeptos a assobiar começa logo por ser estranho. E mais estranho ainda se torna quando se verifica que, durante a Liga, tivemos seis jogos com público nas bancadas: quatro em casa do Santa Clara, enquanto o Governo Regional dos Açores o permitiu, um em Tondela e um em Faro. O Portimonense, por exemplo, jogou duas vezes fora de casa com a presença de público afeto à equipa da casa. E se descer? E se o Santa Clara for à Europa? Será isso acaso obra da desigualdade introduzida na prova pela presença de público? Ou isso só conta se for na última jornada?
Se a Liga recuou por causa disso – e recuou, ao que se lê nos jornais de hoje, por unanimidade da direção – fez mal. Ao outro argumento, no entanto, já sou um pouco mais sensível. É que dificilmente haveria, em tão pouco tempo, condições para definir um plano razoável visando a tal presença de público nas bancadas. Vários amigos interessados em ir ao futebol no final da época já me tinham perguntado: quem é que pode ir? Há rateio na atribuição de bilhetes? Como se faz? Onde se compra bilhetes? A partir de quando? É preciso ter um teste negativo à Covid19? E basta um teste rápido, de farmácia, ou é preciso um PCR? É claro que à medida que a data dos jogos se aproximava sem estas decisões estarem tomadas, comunicadas e implementadas, mais complicado seria ter público nas bancadas. E o primeiro jogo da ronda – uma antecipação que também tem o seu quê de inexplicável em termos de cedência aos operadores televisivos – foi ontem marcado para hoje.
Ora é aqui que entra a manipulação. Na verdade, o Governo nunca quis que houvesse público na última jornada da Liga ou na final da Taça de Portugal, que inexplicavelmente não estava abrangida pela medida. Se quisesse já o teria permitido há mais tempo, quando autorizou, por exemplo, a presença de público nas touradas. Tudo o que o Governo – e até a FPF, que no processo desenrascou os amigos da UEFA – queria era não deixar a ideia de que ia ceder aos estrangeiros aquilo que não dava aos adeptos portugueses, que são quem vota nas nossas eleições: a possibilidade de ver futebol ao vivo. Assim, tomando a decisão tão em cima da hora e depois não lhe concretizando detalhes imprescindíveis, uma vez que, de acordo com o comunicado da Liga, a DGS ainda nem terá enviado o parecer sobre a realização de testes-piloto, dessa forma falhando na necessidade de articulação pedida por António Costa, o Governo tirou com uma mão o que tinha dado com a outra. E fê-lo à descarada, só para poder alegar: nós demos, vocês é que não quiseram.
No processo, Costa terá conseguido o que queria, pois alavanca o turismo e a economia com a final da Champions no Porto e leva imagens de um Portugal acolhedor a todo o Mundo. Na FPF, além de reforçar os laços de confiança com a UEFA, que sabe que pode sempre contar com a Cidade do Futebol – e isso naturalmente trará dividendos políticos – a decisão foi ainda fulcral no sentido de resolver o berbicacho que estava a ser montado na Câmara do Porto, a propósito da mudança de local da Supertaça Europeia, que chegou a estar marcada para o Dragão. A perder no plano político ficou a Liga, aparentemente comida de cebolada. E pronto, ficaram os adeptos. E o que é triste é que a esses cada vez se liga menos.