Lewandowski e as equipas de autor
Lewandowski foi a forma de a FIFA premiar o Bayern e obliterar Flick, tido como mero gestor de economato de uma máquina que aperfeiçoou. É como centrar o sucesso do SC Braga nos golos de Paulinho.
Cristiano Ronaldo está com 35 anos e na época passada a Juventus só ganhou a Série A, da qual ele não foi sequer o melhor marcador. Lionel Messi está com 33, foi o melhor goleador e o maior assistente da última Liga espanhola, mas não conduziu o FC Barcelona à conquista de nenhum troféu coletivo em 2019/20. É nestas alturas que a FIFA aproveita para recordar a todos que os dois são, afinal, humanos e premeia jogadores como o polaco Robert Lewandowski, eleito o melhor do Mundo em 2020, sobretudo em função da enorme superioridade coletiva do Bayern Munique, vencedor da Bundesliga, da Taça da Alemanha e da Liga dos Campeões. É uma escolha aceitável, mas equivale um pouco a achar que o segredo do sucesso deste SC Braga são os golos de Paulinho, ainda ontem autor de um hat-trick frente ao Estoril – e não são, porque muito do rendimento superior da equipa tem a ver com a construção, por Carlos Carvalhal, da que já pode ser considerada uma equipa de autor, na qual o goleador se insere.
A maior injustiça nos prémios The Best foi a derrota de Hans-Dieter Flick na eleição do melhor treinador do ano. Ganhou Jürgen Klopp. E no entanto, boa parte do sucesso de Klopp foi garantido em 2019. A 29 de Dezembro de 2019, ao fim de 20 jornadas, com 19 vitórias e um empate, o Liverpool FC liderava a Premier League com 16 pontos de avanço do segundo – acabou com 18, mesmo a passear depois da retoma da competição após a interrupção devida à Covid-19. Já Flick, que pegou no Bayern em Novembro de 2019, depois de uma derrota por 5-1 em Frankfurt o ter deixado em quarto lugar, a quatro pontos do líder, acabou a Bundesliga com 13 pontos de avanço do segundo e juntou-lhe Taça da Alemanha e Liga dos Campeões, desfazendo pelo meio o FC Barcelona com os 8-2 que ficaram para a história. Em 2020, em 47 jogos de competição, o Bayern ganhou 41, empatou cinco e perdeu um, em Hoffenheim, já esta época, na segunda jornada da Liga alemã.
Não é preciso grande esforço para entender a lógica. Klopp é uma personagem apaixonante, que levou um futebol de autor à conquista da Premier League pelo Liverpool FC. Bem menos intenso como comunicador – e com a barreira da língua, porque estando na Alemanha ainda se expressa em alemão e não em inglês – Flick parece uma espécie de canalizador chamado a afinar a máquina do Bayern. Com um pouco de sorte, durante a Oktoberfest de Munique ainda será possível vê-lo com aqueles trajes típicos da Baviera, vestido à SuperMario. É quase como se pôr o Bayern a jogar enormidades fosse uma banalidade, mera gestão de existências e economato, mas já fazer do Liverpool FC campeão inglês ao fim de 30 anos seja encarado como uma proeza digna de registo. E é claro que houve muito mais importância estrutural na chegada de Klopp ao Liverpool FC do que na chegada de Flick ao Bayern, cujo principal efeito terá sido acabar com o equívoco Nico Kovac. Mas o que a eleição do The Best disse ao Mundo foi que quando o criador não é espampanante, se premeia parte da criatura: e o mais fácil é mesmo escolher o melhor goleador, mesmo que na maior parte das vezes ele se limite a finalizar.
Não quero com isto diminuir o papel do finalizador. A não ser a brincar, nunca me ouvirão proferir a idiotice que é dizer que determinado jogador “não joga nada, só marca é muitos golos”. Mas ainda ontem, a ver o SC Braga arrumar um bom Estoril na Taça da Liga, em mais uma demonstração de qualidade e de sagacidade tática e estratégica, mas com três golos do mesmo homem, o avançado Paulinho, dei comigo a transferir os pensamentos relativos ao The Best para a realidade minhota. Paulinho revelou-se ultimamente um excelente ponta-de-lança, fez-se um nove e meio que está tão em voga nos modelos mais atualizados, mas sem perder capacidade goleadora. Mas seria injusto centrar nele a candidatura efetiva da equipa bracarense a ganhar seja o que for esta época, porque tal como o Bayern é muito mais do que Lewandowski, este SC Braga é muito mais do que Paulinho. A começar pelo sistema que foi montado por Carlos Carvalhal e que não é um 3x4x3, um 4x4x2 ou um 4x3x3, mas sim um misto das três coisas. Tudo para explorar na perfeição o papel de Esgaio e Galeno – mais uma assistência para cada um, ontem –, os dois alas, que são jogadores bem diferentes e exigiam da equipa um encaixe que um sistema linear não lhes dava. Sequeira passa de terceiro central a lateral esquerdo para libertar Galeno à sua frente, Ricardo Horta tanto é terceiro avançado como se transfigura em terceiro médio, coordenando movimentos com os do brasileiro, os dois médios assumem um papel de equilíbrio posicional – e mudam de jogo para jogo como se isso não tivesse influência nenhuma.
Não é preciso ganhar para se construir uma equipa de autor. Jorge Jesus construiu uma no Benfica em 2009 e outra no Sporting em 2015 (e esta não ganhou). Sérgio Conceição fez o mesmo no FC Porto em 2017. Carvalhal e Rúben Amorim estão a contribuir com importantes upgrades no SC Braga e no Sporting de 2020 – e não poderão ganhar os dois. Aliás até pode não ganhar nenhum. André Villas-Boas, Vítor Pereira, Rui Vitória ou Bruno Lage, por exemplo, ganharam campeonatos à Flick: com grande superioridade mas sem grande assinatura. E nessa altura, premeiam-se os jogadores. Hulk, James Rodríguez, Jonas ou João Félix fizeram de Lewandowski, mesmo que as equipas fossem muito mais do que eles.