Jesus e o trotskismo tático
O Benfica voltou a surgir com três centrais e Jesus diz que o futuro do futebol está na revolução tática permanente. O que é que isso traz a esta equipa? Que problemas resolve e quais são os que cria.
Não sou um fanático da tirania dos sistemas e acredito que Jorge Jesus possa ter razão quando diz que “o futuro do futebol mundial” está na mudança permanente. Mas também não sou insensível à observação da realidade e o que esta me diz é que a inconsistência que o Benfica tem mostrado esta época, depois de um início de campeonato mais conseguido, tem muito a ver com o facto de os jogadores ainda não terem apreendido por inteiro uma forma de jogar quando começaram a aventurar-se em outras a cada vez que o adversário assim o sugeria. O 3x5x2 que o Benfica experimentou ontem contra o Arsenal favorece a implantação de alguns jogadores e pode contribuir de forma decisiva para resolver um par de problemas, mas cria outros – e quando assim é, a questão é superior e passa pela construção de um plantel que não casa com a ideia que o treinador tem para ele.
Jesus mudou – o que é admirável num homem da idade dele. Esta adoção de uma espécie de trotskismo tático, na defesa que pressupõe de uma revolução permanente, contradiz aquilo que o treinador sempre pensou, quando defendia que tudo partia dos posicionamentos e do sistema, incluindo o modelo de jogo – o que era uma espécie de sacrilégio para quem pensava o futebol em ambientes mais eruditos. E atenção que esta mudança no pensamento de Jesus não é má nem boa. É só assinalável, sem juízos morais acerca de evolução ou contradição. Toda a evolução é contradição e cada um lhe atribuirá os adjetivos que achar mais certos, sendo que nada a julgará de forma tão decisiva como os resultados. E estes mostraram um Benfica de peito feito a seguir à pré-época – sete vitórias seguidas entre meados de Setembro e finais de Outubro – até ao momento em que a derrota no Bessa, em início de Novembro, lançou a dúvida e levou Jesus a abdicar, por vezes, da estrutura que escolhera (e treinara com mais insistência e afinco), fosse para voltar à versão mais comedida com que iniciara a época em Salónica, com mais um médio, fosse mesmo para lhe dar mais um homem atrás, como no empate no Dragão (1-1), na derrota em Alvalade (0-1) ou no empate de ontem com o Arsenal, em Roma (1-1).
O Benfica de Jesus em 2009 partia da mesma organização na esmagadora maioria dos jogos – a mesma organização que ele implementara no Belenenses ou no SC Braga e que depois escolheu para o Sporting. A primeira época de Jesus aos comandos de um grande baseou-se numa linha de quatro ferreamente organizada, num médio-centro posicional, descomplicado no passe e forte nas tarefas defensivas (Javi Garcia), em dois médios-ala bem diferentes (mais trabalhador e dado a equilíbrios Ramires na direita, mais driblador e dado a desequilíbrios Di María na esquerda), num segundo médio criativo e com chegada a zonas de definição (Aimar) e em dois avançados complementares (se Cardozo era finalização, referência e profundidade, Saviola era mobilidade, velocidade e apoios). Às vezes mudava, com a introdução de mais um médio e a passagem de Aimar para segundo avançado, mas a raiz era quase sempre a mesma. Onze anos depois, não é preciso ser adepto benfiquista para recordar como se estruturava essa equipa, que passou a jogar “o dobro” da sua antecessora: o Benfica de Quique Flores venceu 23 jogos e marcou 73 golos em 2008/09; o de Jesus ganhou 38 vezes e marcou 124 golos em 2009/10.
Esta época, é pelo menos curioso que, com uma organização que não muda um milímetro, o Sporting esteja a superiorizar-se na Liga a um FC Porto que altera regularmente, ainda que nunca seja nunca tão forte como é no seu predileto híbrido de 4x4x2 com 4x3x3, com defesas-laterais fluídos, dois médios que se conhecem e complementam tão bem como Oliveira e Uribe e depois as trocas posicionais entre os avançados e os dois médios criativos (Corona e Otávio) a transformarem o 4x4x2 em 4x3x3 e vice-versa. Rúben Amorim não abdica do 3x4x3 – muda sempre dentro dele – porque não quer atolar os jogadores em excesso de informação, ao menos enquanto eles não tiverem entendido todas as nuances do sistema. E o treinador do Sporting tem uma benesse que os rivais não têm tido e que até poderia permitir-lhe mudar ocasionalmente, que é tempo para treinar, para os jogadores entenderem as movimentações que o fato deles exige. Depois, também não deve ser à toa que, com muito menos recursos e investimento, também o SC Braga esteja a superiorizar-se ao Benfica na Liga: tal como Amorim, Carlos Carvalhal não muda a estrutura, sempre um híbrido de 3x4x3 com 4x4x2, devido ao comportamento de Sequeira e Galeno na esquerda, limitando-se a introduzir mais ou menos risco consoante coloca Fransérgio como médio ou como terceiro avançado. Não tem sido assim o Benfica – e aparentemente Jesus não olha para isso como um problema mas sim como sintoma de evolução.
Os três defesas podem ser uma solução para o Benfica, porque permitem encaixar Veríssimo, Otamendi e Vertonghen sem ter de desviar o belga para lateral-esquerdo, mas certamente que precisarão de muito mais tempo de trabalho, de forma a evitar embaraços como os que Saka e Odegaard foram sempre capazes de provocar na exploração do espaço entre o central e o lateral ou nas costas deste. Além disso, se a ideia é mudar para o 3x5x2, isso vem resolver outra questão, que é a do meio-campo, pois tanto Weigl como Pizzi ou Taarabt (ou Chiquinho ou Gabriel ou Everton, se o treinador achar que deve pô-lo a jogar por ali) ficam bem menos expostos num meio-campo a três do que a dois. A dois, o alemão, o português e o marroquino são curtos de intensidade defensiva, ao passo que se a opção for conjugar Weigl com Gabriel ou até Samaris a equipa fica trôpega ofensivamente. A três, o quadro fica completo. Só que, a não ser que Jesus consiga fazer com o batalhão de médios-extremos que tem o que está a fazer com Diogo Gonçalves ou Cervi, reconvertendo-os a novas missões, este novo sistema implica muito desperdício. Pode Everton ser médio-interior? E Pedrinho? E pode Rafa ser segundo avançado? É da resposta a estas perguntas – e de tempo de trabalho – que depende a adoção deste novo sistema por parte do Benfica. De preferência depois de ter tido tempo para o trabalhar.