Jesus e a descapitalização do plantel do Benfica
A eventual contratação de Jesus é a admissão de um erro estratégico. O Benfica espera que o técnico faça o papel da criança que grita "Olhem! O rei vai nu!"
A confirmar-se a recuperação de Jorge Jesus pelo Benfica, depois de o Flamengo disputar a segunda mão do campeonato carioca, na quinta-feira, contra o Fluminense, estaremos face a dois tipos de conclusões. Pode ser a admissão silenciosa de Luís Filipe Vieira de que foi Jesus o responsável-mor pela mudança de paradigma de um clube que vinha de 20 anos de derrotas mais ou menos consistentes, mas trata-se sobretudo da assunção, por parte do clube, de que a estratégia de capitalização financeira e contabilística com base no Seixal está a conduzir à descapitalização futebolística do plantel e a colocar em risco a hegemonia que a riqueza gerada poderia proporcionar. É, portanto, a admissão de um erro estratégico, por muito que as pessoas queiram fulanizá-lo na figura de um homem.
Vamos a ver: nos cinco anos sem Jesus, o Benfica até foi mais consistente do que nos seis anos com ele. Se entre 2009 e 2015, com o ainda técnico do Flamengo, ganhou três Ligas em seis, depois disso, com Rui Vitória e Bruno Lage, ganhou três em cinco – isto presumindo que a atual está perdida. Só que, antes de Jesus, tinha ganho uma em 15. E à conclusão de que a tão desejada hegemonia estará a fugir não é alheio o facto de o FC Porto estar prestes a ser campeão pela segunda vez em três anos. Além de provar que é um erro menosprezar o rival – e o Benfica cometeu-o, passando a viver dentro da bolha de criação de talento de geração espontânea no Seixal –, este facto é mais um a chamar a atenção para a descapitalização futebolística de um plantel que, sendo forte, é pior do que há cinco anos, mesmo que valha mais nos planos contabilístico e financeiro. Ora, além de ser indiscutivelmente competente no campo de treinos e no banco, é precisamente aí que Jesus pode mais útil.
Quando Bruno Lage saiu mesmo e se começou a falar com mais insistência e propriedade no regresso de Jesus, um dos primeiros rumores que circulou foi o de que o treinador teria dito a Vieira que exigia uma revolução na equipa. Que a maioria dos que lá estavam não serviam. “Como assim?”, terão pensado os benfiquistas mais crédulos, a quem foi prometido o El Dorado do Seixal, de onde todos os anos ia sair um jogador de 100 milhões, permanecendo muitos outros que valiam de 50/60 milhões para cima – o que só não acontecia antes porque Jesus não punha os miúdos a jogar. Entretanto, o rumor ganhou letra de imprensa e já se viu escrito que Vieira vai abrir os cordões à bolsa e gastar mesmo 100 milhões em reforços neste mercado que aí vem, como forma de satisfazer o treinador. O facto é mais surpreendente por se prever um mercado em recessão – devido à Covid… – do que se o avaliarmos em função do comportamento benfiquista nos últimos mercados: o Benfica já gastou 63,5 milhões nas duas janelas de transferências de 2019/20, tornando esta temporada na mais dispendiosa de sempre da sua história.
Portanto, aquilo que está em causa aqui é sobretudo controlo, como forma de evitar a descapitalização futebolística de um plantel iludido pela facilidade com que se impõe nos mercados internacionais – muito graças à ação de Jorge Mendes, o terceiro vértice de um triângulo que tem no clube e no treinador os dois vértices iniciais. O modelo de negócio do Benfica foi montado na capacidade negocial da Gestifute para vender os talentos que gera muito acima do seu valor real, criando valor financeiro (receita) e incrementando as mais-valias nos relatórios e contas. Ora isso criou dois problemas. Um foi ao nível da decisão nas alturas de reinvestir, onde nem sempre foram tomadas as melhores opções (de Castillo a Ferreyra ou De Tomás, muitas das contratações-bandeira já foram recambiadas) – mas aí nem Jesus é infalível, como se viu nalgumas apostas furadas que também fez tanto no Benfica como depois, no Sporting. O outro situa-se ao nível da perceção que no clube se tem do valor dos jogadores que vão aparecendo vindos do Seixal.
Como os alfaiates fajutos que, no conto de Hans Christian Andersen, disseram ao rei que estavam a vender-lhe um fato que distinguia os inteligentes dos otários, o mercado convenceu os benfiquistas de que todos os jogadores do Seixal eram superiores à concorrência. Disse-lhes, por exemplo, que Gedson valia mais que Bruno Fernandes – a cláusula de opção do médio que o Benfica emprestou ao Tottenham é superior ao valor que o Manchester United pagou ao Sporting pelo jogador que liderou a épica recuperação que provavelmente devolverá Old Trafford à Liga dos Campeões em 2020/21. E aí, quanto mais não seja por ter preferência pelos seus próprios alfaiates e pelos seus próprios tecidos, Jesus funciona às mil maravilhas. É ele a criança que, para admiração geral, grita “Olhem! Olhem! O rei vai nu!”