Jesus e a Covid19 no Benfica
O discurso de Jesus pode ser visto como uma forma de motivar a equipa ou como uma justificação pessoal para não estar na frente da Liga. A primeira é uma boa razão. A segunda é só perigosa.
O discurso emocional de Jorge Jesus acerca dos efeitos da Covid19 na equipa do Benfica, após a vitória sobre o FC Famalicão, tem alguns pontos de contacto com a realidade, outros mais próximos da ilusão pura e, ao contrário, por exemplo, das palavras de Jürgen Klopp antes do jogo com o Manchester City, tem mais como intenção estimular a equipa do que encontrar desculpas para derrotas futuras. No fundo, a diferença é que enquanto Klopp terá percebido que não podia ganhar ao City e foi à procura das razões para tal no Mundo peculiar que existe dentro da cabeça de cada um de nós, Jesus acredita que vai ganhar tudo daqui para a frente e foi ao mesmo local buscar justificações para o que perdeu lá para trás. Jesus acredita de forma convicta em tudo o que disse. E é isso que torna o seu discurso perigoso em vez de ser uma simples manobra motivacional.
É evidente que o surto de Covid19 teve um efeito devastador nos resultados do Benfica. Isso ninguém no seu perfeito juízo pode negar. Sempre o disse e até defendi que o Benfica devia ter tido o direito a adiar o jogo com o Nacional – não o da Taça da Liga com o SC Braga, como expliquei aqui, nem os jogos que se seguiram, com Sporting e Vitória SC, já a contar para o campeonato. Simplesmente, nessa altura, limitei-me a responsabilizar a tão afamada “estrutura” encarnada por, tal como a de outros clubes, não ter pensado nisso antes de a época se iniciar e por não ter forçado a inclusão de normas objetivas nesse sentido no Regulamento Geral de Competições. Porque nessa altura toda a gente acha que isto só vai tocar aos outros e que com isso vivemos nós bem.
Jesus terá sentido no organismo os efeitos devastadores da doença – o que o leva a encará-la de uma forma muito mais responsável do que da última vez que falei com ele sobre o tema, estava ele de saída para o Brasil para retomar a época com o Flamengo – e isso levou-o a subestimar indevidamente outros fatores. Quando o treinador do Benfica diz que Everton se livrou da Covid19 e que por isso fez, ontem, “uma jogada como as que fazia todas as semanas no Brasil”, está a alargar indevidamente aos primeiros quatro meses da temporada os efeitos de uma doença que o médio só contraiu em meados de Janeiro. Foi uma “liberdade poética” como houve outras no discurso do treinador ontem – a quantidade de jogadores afetados em simultâneo ou o período em que a equipa esteve limitada, por exemplo.
Quando lhe dizem que “o Benfica não teve sempre Covid19” e Jesus responde que “por isso estava em primeiro lugar, é fundamental que alguém lhe diga que não estava. Que quando saiu do Dragão, a equipa do Benfica já estava a quatro pontos do líder. Agora está a oito e, caso o Sporting ganhe hoje em Barcelos, pode ficar outra vez a onze? É verdade. Mas será que esses sete pontos perdidos se explicam todos com os efeitos da doença? Creio que não. Mais: creio que, no Mundo real, não haveria alternativas. Porque se, caso alguém tivesse tido a decência de pensar nisso antes do início da época, o Benfica devia ter visto plasmado no regulamento o direito a adiar o jogo com o Nacional, no qual entrou, a 25 de Janeiro, sem dez jogadores, seis dos quais habituais titulares, todos eles infetados com Covid19, já não aconteceria o mesmo no dérbi com o Sporting, a 1 de Fevereiro, para o qual já só lhe faltou Everton. E muito menos na receção ao Vitória SC, que enfrentou sem infetados, à exceção do próprio treinador.
Ora esse é o ponto. No fundo, toda a argumentação vai esbarrar no orgulho ferido e numa personalidade demasiado centrada em si próprio do treinador, que o leva a reagir desta forma e a achar que tão importante como os dez jogadores que lhe faltaram contra o Nacional foi não estar ele próprio em Alvalade e na receção ao Vitória SC. No fundo, foi uma resposta emocional ao que Jesus leu e ouviu nestes dias acerca das suas próprias capacidades de escolher e de liderar homens – isto de se estar doente em casa a ver programas televisivos acerca de futebol deve ser pior que andar a debater ideias no Twitter. “Se a equipa não jogasse porque eu não a sei treinar…”, disse Jesus ontem, desviando a conversa do Benfica para a sua própria capacidade. “Não ganhei troféus de carica!”, exclamou, a confirmar a mudança de agulha.
A época do Benfica não acabou. Há Taça de Portugal, há Liga Europa e há, ainda, campeonato, onde os encarnados estão a apenas três pontos do segundo e a oito do primeiro – ainda que o Sporting tenha o tal jogo a menos. O discurso de Jesus ontem pode ter tido o mérito de acordar a equipa, de a fazer acreditar que há muito por conquistar, de a motivar para os meses que aí vêm. E já se sabe que a crença, a fé, podem mover montanhas. Mas é importante que alguém acima tenha lucidez suficiente para entender que nem tudo no rendimento da equipa do Benfica se explica com estas três semanas de Covid19 ou com a ausência de Jesus em dois jogos e nos treinos da última semana e meia. Porque acreditar nisso é crer numa ilusão.