Identidade e exigência no clássico
Será o clássico de amanhã decisivo? E que argumentos serão mais importantes para definir um vencedor? A quem fala da sobrecarga de jogos, respondo com identidade e exigência.
O FC Porto-Sporting de amanhã abre as hostilidades no que toca à ronda de jogos decisivos na Liga de 2020/21 e, por uma vez, não ouviremos falar de sobrecarga competitiva ou de dias de repouso e recuperação, pois as duas equipas entrarão no relvado do Dragão cinco e sete dias passados sobre o último compromisso. Na que pode ser uma das últimas oportunidades para os campeões nacionais se manterem no rumo da renovação do título, ganhando ou pelo menos não perdendo, não estará em jogo o argumento do cansaço, mas não faltarão outros: dependendo de como correr o desafio, estaremos a debater o peso mental de uma primeira derrota leonina no campeonato, uma tentação pela gestão que acabou por correr mal, ou a euforia de mais um clássico ultrapassado sem que a vantagem diminua e uma encomenda de faixas de campeão que a meu ver seria ainda precipitada. Os argumentos decisivos serão bem diferentes: a identidade do FC Porto e a exigência do Sporting.
É claro que a eventualidade de uma vitória do Sporting amanhã deixaria o título muito perto de Alvalade. Aritmeticamente isso é simples de entender: aumentaria a vantagem sobre o FC Porto para 13 pontos, a menos uma jornada do fim – ficariam a faltar mais 13 – e, mesmo que mantivessem apenas 11 pontos sobre o SC Braga, os jovens leões de Rúben Amorim poderiam sobretudo construir e beneficiar de uma carapaça mental de equipa indestrutível que os deixaria a coberto de ameaças. Por outro lado, parece-me evidente que o empate não resolve as coisas: pôr uma pedra sobre o tema nessas condições, só porque o Sporting manteria os dez pontos de avanço – podendo permitir a aproximação do SC Braga para nove de distância – seria o mesmo que admitir que o SC Braga já está fora das contas. E não creio que esteja. Por fim, é verdade que, mesmo perdendo no Dragão, a equipa do Sporting continuaria com uma vantagem confortável – ainda seriam sete pontos sobre o FC Porto, na pior das hipóteses oito face ao SC Braga e 12 para o Benfica –, mas poderia passar a duvidar de si mesma. E aí tudo dependeria da resposta que o grupo seria capaz de dar à situação logo a seguir, quando receber o Santa Clara e for a Tondela.
O futebol tende a levar-nos para as discussões mais evidentes mas menos importantes. Neste caso, já se vê, a aritmética dos pontos é a mais evidente. Mas não é a mais importante ou a mais relevante. O que a aritmética nos diz é que o Sporting tem sido a melhor equipa do campeonato. O que a experiência nos conta é que, nos dois jogos que fez com o FC Porto esta época, ganhou um e empatou o outro, mas que em ambos os casos estava a perder a cinco minutos do fim. “E depois? Os jogos têm 90 minutos, são para se jogar até ao fim!”, dirão de um lado. Certo. Mas isso só mostra que as diferenças entre as duas equipas são tão ténues que um detalhe pode transformar um resultado. E, quando falamos de detalhes, muitos vão começar a pensar em casos de arbitragem, numa bola que vai ao poste em vez de entrar ou nos dias de descanso e preparação que cada equipa teve antes do jogo. A mim foge-me o raciocínio para outros campos, como a capacidade que Rúben Amorim terá para explicar aos seus jogadores que a procrastinação é inimiga da perfeição, que os assuntos são para resolver quando há oportunidade, ou a decisão que Sérgio Conceição terá de tomar entre manter a identidade que mais favorece a sua equipa – são os campeões, caramba – ou encaixar na do adversário.
O Sporting já teve uma amostra disto na época passada. Começou por achar que o terceiro lugar – e a qualificação direta para a Liga Europa – era impossível, acordou com as derrotas do SC Braga depois da saída de Rúben Amorim, voltou ao lugar do condutor e viu-se numa situação em que lhe bastaria ganhar um dos últimos três jogos para atingir o objetivo. Entrou em gestão e deu-se mal, porque perdeu com o FC Porto no Dragão e com o Benfica na Luz, não indo além de um empate em casa contra o Vitória FC. Este é um fenómeno natural em equipas jovens e pouco habituadas à pressão de ganhar e é com ele, quase tanto como com o FC Porto, que o Sporting tem de batalhar no que falta desta Liga. Até aqui tem feito bem o seu papel, mas é agora, que a Liga se aproxima das fases decisivas, que a margem de manobra vai diminuir. O velho aforismo segundo o qual o Sporting nunca durava até ao Natal baseava-se na constatação de uma realidade inegável e que as duas últimas Ligas vieram recordar de forma estrondosa, com as recuperações de Benfica (em 2019) e FC Porto (em 2020) – os campeões constroem-se até ao Natal mas fazem-se do Ano Novo para a frente e quem não tem estofo acaba sempre por se deixar inebriar e ceder a facilitismos.
Essa lição, o FC Porto já a aprendeu em anos passados. Ali, a tentação é a da desculpabilização com o excesso de jogos. Os adeptos vão mesmo mais longe e dizem que o Sporting só está à frente porque não está na Europa, como se houvesse dois campeonatos: o dos pobrezinhos, dos que não andam na Europa, liderado pelo Sporting, com 16 pontos de avanço sobre o FC Paços de Ferreira, e o outro, o dos clubes a sério, que jogaram competições europeias, onde o FC Porto leva um ponto de avanço sobre o SC Braga e cinco sobre o Benfica. Essa é, no entanto, uma falsa questão, uma minudência que não é irrelevante mas cujo foco tem estado a ser erradamente desviado.
Não estou a dizer que o tempo para treinar não é importante. Aliás, acho que foi fundamental na forma como o Sporting construiu a vantagem nesta Liga. Anda-se, contudo, a olhar para o período errado. O FC Porto já fez 35 jogos esta época, contra 28 do Sporting. São sete jogos a mais em cinco meses – causarão certamente mossa. Mas depois olha-se para o aumentar da distância entre as duas equipas de quatro para os atuais dez pontos desde o Ano Novo e começa a falar-se da falta de dias para recuperar, do jogar de três em três ou de quatro em quatro dias nesta fase, e o tiro já sai completamente descalibrado. É que desde o Ano Novo, em dois meses, o FC Porto jogou por 14 vezes e o Sporting por 12. A diferença, nesse período, é ténue – mais um jogo por mês.
A grande diferença fez-se em Outubro e Novembro, período em que os dragões tiveram de concentrar seis desafios da fase de grupos da Liga dos Campeões em oito semanas – com uma interrupção para as seleções pelo meio – e os leões puderam passar essas mesmas semanas a treinar, a trabalhar a identidade que agora quase lhes permite jogar de olhos fechados. Foi aí que se jogou grande parte desta Liga. E quanto mais Sérgio Conceição abdicar das ideias que a equipa já aprendeu em épocas passadas para encaixar na estrutura do Sporting que quer contrariar, mais vai dar essa vantagem da identidade ao adversário.