Gomes, a pandemia e a geração perdida
É mais fácil identificar os problemas que o futebol atravessa do que resolvê-los. Fernando Gomes mostra que sabe que há uma geração perdida à espera do Governo. E vamos pagar isso em termos sociais.
A ler a entrevista de Fernando Gomes ao Record de hoje vieram-me à cabeça as palavras de Sérgio Conceição a propósito do futebol do Sporting de Rúben Amorim: “é fácil compreender como jogam; o difícil é contrariá-los”. Assim está o presidente da Federação Portuguesa de Futebol com os maiores problemas do jogo em Portugal, seriamente agravados pelo contexto pandémico. Porque se Jorge Jesus descobriu agora que a Covid19 o impediu de treinar os seus jogadores por “dois meses e meio”, Fernando Gomes há muito sabe que as bases de futuro do desporto a cujos destinos preside estão encerradas vai para um ano. E isso não é dramático só para os clubes e as escolas de futebol. É catastrófico para o que queremos ser enquanto país – e que vai muito para lá das mais-valias com transferências para o estrangeiro de jovens talentos.
Gomes tem ideias muito claras em relação a tudo – menos, vá lá, das razões pelas quais a Liga foi apenas convidada de última hora para a cimeira com Governo, quando foi altura de se negociar a retoma competitiva. “Isso já foi há um ano…”, disse, a atalhar a conversa com uns “problemas de comunicação”. Mas, de resto, percebe-se bem o pensamento do líder da FPF quanto a reformulação de quadros competitivos, direitos televisivos, integração nas provas europeias, regulação das apostas ou efeitos desta paragem na formação. O problema é que a quase todas estas temáticas se aplicam as palavras de Sérgio Conceição: é relativamente fácil analisá-las e extraordinariamente difícil ultrapassá-las. E se algumas, como por exemplo a reformulação dos quadros competitivos, encerram na solução algumas contradições que criarão novos problemas, outras, como a questão do match-fixing, estou inclinado a acreditar que não terão solução nos tempos mais próximos, dado o volume das verbas implicadas. No fundo, o problema de base é este: o dinheiro não aumenta e, assim sendo, o segredo está e estará sempre na forma como ele se divide.
O futuro passará pela reformulação da Liga dos Campeões, com mais jogos, e Gomes explicou aquilo que tenho vindo aqui a dizer há anos – que esta é a única oportunidade de os nossos clubes se sentarem à mesa com os maiores, de partilharem mercados com eles e de acederem ao bolo da receita do grande futebol. E isso é bom. Mas ao mesmo tempo obriga a que se jogue menos internamente, para os grandes não andarem tão sobrecarregados como este ano, em que, até pela compressão de calendários devida à Covid19, viram a competitividade afetada pela falta de tempo para treinar. E isso, que se soluciona com a redução da Liga – é indiferente se para 16, 14 ou 12 equipas – traz um problema por arrastamento: teremos menos clubes a competir, menos jogadores profissionais e, portanto, menos gente a receber o dinheiro da I Liga e uma menor base de recrutamento para as seleções nacionais. Vários clubes se queixaram já da diferença que faz jogar o primeiro ou o segundo escalão em termos de orçamento – a redução do topo da pirâmide vai atirar mais gente para uma base que dificilmente terá como se pagar a si mesma.
No fundo, aqui se fará o caminho inverso ao que se pretende com a catastrófica paragem a que o futebol – e as outras modalidades – foram obrigados pelas autoridades sanitárias. Vem aí um pacote de apoios – dois milhões de euros, um terço a fundo perdido – para pequenos clubes e associações regionais, mas essa é apenas uma parte do problema. Mais do que tirar os jogadores a Jorge Jesus durante uns mundialmente nunca vistos “dois meses e meio” ou do que impedir a generalidade dos clubes que sobreviviam da venda de bilhetes ou da receita do bar em dias de jogo, esta pandemia afastou da prática desportiva quase todos os jogadores não profissionais ou equiparados. As exceções, reconhece Gomes, vieram de habilidades de associações regionais, que criaram competições de sub21 para nelas poderem entrar alguns sub17 ou sub19. Dos 270 mil atletas federados de sub19 para baixo em 2019/20, diz Gomes que as cinco principais modalidades coletivas só têm em atividade em 2020/21 cerca de cinco por cento.
Querem isto simplificado? Só um em cada 20 miúdos que praticava desporto federado antes da pandemia está a fazê-lo neste momento. Os outros 19 estão parados. Destes, muitos se perderão. E o problema não são, como se pressuporia da pergunta feita a seguir ao presidente da FPF, “os milhões que vão perder-se em transferências”. Isso é irrelevante, pois o mercado encontra sempre forma de se auto-regular e, desde que haja dinheiro, ele acabará por circular – falta saber se haverá dinheiro. O problema são as consequências para o futuro dos clubes mais pequenos e, sobretudo, para a saúde pública de uma geração que vai perder os poucos eleitos que praticavam desporto e acabará por pagar isso tudo noutros fatores, como a maior propensão para doenças associadas ao sedentarismo. Esta corre o risco de ser a geração perdida da sociedade portuguesa e aí a culpa é do Governo. Gomes, quanto muito, sempre soube disto, mas nunca conseguiu convencer os governantes da importância de se contrariar o problema.