Ganhar e ser adorado
Nesta fase da carreira, Ronaldo mantém duas grandes motivações: ganhar e ser adorado. No United pode até sacrificar a primeira, mas preserva a segunda, sobretudo na irmandade criada por Ferguson.
Há quem veja no regresso de Cristiano Ronaldo ao Manchester United a vitória do amor à camisola e do romantismo num desporto cada vez mais centrado nos milhões. Não vou negar essa bela história, porque não estou dentro da cabeça do craque português, mas estaria bem mais à vontade para a suportar se ele tivesse recusado propostas melhores ou imposto à Juventus que só queria mudar-se para Manchester se fosse para vestir de vermelho. E não creio que tenha sido esse o caso. Na verdade, ainda ninguém percebeu se a decisão foi do jogador ou do clube italiano, que do United receberá os 30 milhões de euros pretendidos para fazer face às amortizações previstas no último ano de contrato do CR7. Mas o caso serve para iluminar as prioridades do CR7 nesta fase da carreira: ganhar e ser adorado. Mais a segunda do que a primeira.
Na sexta-feira, quando o Manchester City ainda parecia estar na frente da corrida para assinar com Ronaldo, vi na transferência virtudes tanto para o jogador como para a própria seleção nacional, que poderia beneficiar do trabalho que ele pudesse vir a desenvolver com Guardiola no clube. A verdade é que Ronaldo não beneficia de uma ideia vinda de um treinador desde que deixou de ter Mourinho em Madrid. A bonomia e o saber estar num balneário cheio de estrelas que Zidane sempre mostrou foram relevantes, como o foi a exigência de Ferguson na sua transformação em animal competitivo, mas não acrescentaram nada à experiência que deve ser a integração do CR7 numa equipa. Ele continuou a brilhar, porque é uma máquina. E as suas equipas até ganharam, muitas vezes porque já traziam balanço de trás. Mas a máquina começa a acusar o desgaste natural dos anos de utilização e chega a altura em que é necessário reinventar o seu funcionamento. E a verdade é que Ronaldo tem sido deixado completamente sozinho nessa tarefa, muitas vezes decidindo ele como há-de desempenhá-la. E, sim, reconhecendo eu que enquanto jogador de exceção ele tem ótimas noções do que fazer em campo, certamente que os defensores do “cristianismo” como religião dogmática poderão entender que ter treinador poderia ser um upgrade muito interessante para o profeta.
Ora a verdade é que não se conhece a Ole Gunnar Solskjaer uma ideia acerca de futebol para que se espere que seja ele a fornecer esse upgrade a Ronaldo. Essa não terá certamente sido a motivação do craque português quando escolheu Old Trafford em vez do Ettihad. Em função do quê terá Ronaldo escolhido, então? – isto, claro, assumindo que foi ele a escolher e que, tendo sido, a motivação maior não era apenas pôr-se a andar de Turim, onde não reconhecia à equipa a capacidade para ser vencedora e iria levar com Massimo Allegri, um treinador que também não era louco pela ideia de construir um coletivo em torno dele. À partida, vejo em Ronaldo duas motivações. Uma é ganhar. E é notável que, aos 36 anos, já tendo ganho tanta coisa, ele ainda mantenha a sede de conquista de um miúdo acabado de sair dos juniores. A quem passa a vida a criticá-lo por querer fazer golos, por querer bater recordes, só digo uma coisa: ainda bem que assim é. A outra motivação é ser adulado, ser alvo de admiração, até de adoração por parte de colegas de equipa, adeptos, jornalistas e comentadores televisivos – no caso do United, aliás, há quem acumule as quatro facetas e não falta quem diga que foi a pressão de gente influente, como Rio Ferdinand ou Gary Neville, a trabalhar muito para este desfecho.
Seja como for, esta vertente da adoração, não sendo tão recomendável, pode mesmo ter sido a decisiva na mudança de Ronaldo. É verdade que com Sancho, Varane e agora Ronaldo, o United teve um Verão muito interessante em termos de mercado, mas ainda assim parece-me que está atrás do Manchester City, do Chelsea e do Liverpool FC no que a possibilidades de ganhar diz respeito. Tanto interna como externamente – e aqui nem é preciso juntar à equação os nomes dos treinadores ou confrontar o charme e as ideias próprias de Guardiola, Tuchel ou Klopp, provavelmente os técnicos mais influentes do futebol europeu hoje em dia, com aquilo que vem de Solskjaer, que é gestão corrente e navegação à vista. Mas basta ver a celebração de Peter Schmeichel com champagne quando soube que Ronaldo ia para o United, ou ler a troca de mensagens postada por Patrice Evra para perceber que, ao longo dos anos, Alex Ferguson criou em Old Trafford um sentimento de pertença ao qual é difícil fugir. O que custaria a Ronaldo caso tivesse de lá entrar vestido com a camisola do City não seriam tanto os assobios do público – público hostil é igual em qualquer lado – mas sim a negação desse sentimento de pertença e a sensação de que estaria a trair a fraternidade construída em cima de sucessos por Ferguson.
Ronaldo não foi para o United por amor à camisola. Foi para o United por amor a uma família que o adora e venera. Pode nem ser o melhor para a carreira dele e para a seleção nacional, mas foi o que ele conseguiu e quis fazer. E, sendo assim, também está bem.