Ganhar à Madrid
Há alguma coisa de místico ou genial na forma como o Real Madrid repete sucessos na Liga dos Campeões? Não creio. O maior mérito há-de ser mesmo esse: tornar tudo descomplicado para os jogadores.
Já vi e li muitas análises à vitória (1-0) do Real Madrid sobre o Liverpool FC na final da Liga dos Campeões. Já ouvi falar de cinismo, de brilhantismo tático, de peso da história, de liderança e até de algum misticismo. Mas não há grande explicação para o facto de, repetidamente, o Real Madrid chegar a este jogo e o ganhar, quando nem sempre tem a melhor equipa. As oito finais consecutivas que os merengues levam do lado dos vencedores deviam ter uma melhor explicação do que a mera vontade dos Deuses, refletida no golo salvador de Sérgio Ramos já nos descontos da final de Lisboa, em 2014, ou nas paradas de Courtois no sábado, em Paris, transformando em pólvora seca os 23 remates feitos em 90 minutos pela equipa de Jürgen Klopp.
Carlo Ancelotti revelou depois do jogo com o Liverpool FC que durante a época tinha dito a Courtois: “Eu levo-te até à final e tu depois ganhas-ma”. Não explicou como. Porque não tinha em mente nenhum plano tático superior: aquela era apenas mais uma manifestação de um tipo de liderança que ali faz todo o sentido. Aliás, na equipa do Real Madrid não se deteta nenhum plano tático superior. Como já não se detetava no Liverpool FC de Bob Paisley e depois de Joe Fagan – quatro finais ganhas entre 1977 e 1984. Nesta final, como em outros jogos de maior exigência, repetiu-se uma pequena nuance, na colocação de Fede Valverde a jogar a partir da direita, permitindo aos madridistas formar com uma espécie de três paredes, uma primeira inclinada para a esquerda, com Vinícius Júnior e Benzema, uma segunda mais puxada para a direita, com o uruguaio e Modric, e uma terceira outra vez para a esquerda, com Kroos mais baixo, no mesmo plano de Casemiro. Nada de inovador ou de extraordinário, porque se fundava na mais velha verdade do futebol: regra geral, com algumas exceções, quem ganha os jogos são os jogadores.
E essa é a virtude maior da condução de equipas “à Real Madrid”, já presente em Vicente del Bosque (campeão europeu em 2000 e 2002) ou em Zinedine Zidane (que repetiu os títulos em 2016, 2017 e 2018). O plano, que era quase a aplicação a um campo de futebol de um velho jogo de computador, porque colocava a organização ofensiva do Liverpool FC na posição do peão que tenta atravessar a estrada e evitar os carros que a vão “varrendo”, não impediu os ingleses de chegarem com frequência às imediações da baliza de Courtois. E o que foi decisivo nessas circunstâncias foi a qualidade de cada um dos executantes madridistas, a sua entrega a uma causa ou a crença que transportam com eles assim que vestem aquela camisola. Porque as coisas, aqui, são indissociáveis e até são incrementadas por “soundbytes” motivacionais como o proferido por Florentino Pérez nos festejos na Cibelles: “Agora vamos à 15ª!”.
É por isso que em nenhuma equipa destes tempos se vê o que se vê no Real Madrid de hoje ou, repito, o que se via no Liverpool FC do final da década de 70 ou até mesmo no Manchester United de Alex Ferguson, na década de 90: um abuso de confiança nas competências de cada jogador, refletido na frase de Ancelotti a Courtois. É quase o “Vão lá para dentro e divirtam-se” que todos os treinadores gostariam de poder dizer uma vez mas que os mais conscientes, pelo menos, nunca dirão, porque sabem que há sempre mais um detalhe a afinar. E a questão é que ninguém no seu perfeito juízo dirá que Valverde, Benzema e Vini Júnior são superiores a Salah, Mané e Díaz, mas ainda hoje deparei com uma análise de Barney Ronay, no “The Guardian”, que contava que só o egípcio perdeu nos 90 minutos de Paris as mesmas oito bolas que foram perdidas pelos três da frente da equipa espanhola. Ou que Kroos e Modric, os dois juntos, só foram desarmados uma vez em todo o jogo.
Portanto a coisa vai muito para lá de qualquer plano tático – a não ser que o plano seja “Não percam a bola sem necessidade e marquem sempre mais um golo do que o adversário”, assim como um pai diz a um filho quando este começa a deixá-lo ir para a escola sozinho que tenha cuidado com os carros a atravessar. Vai muito para lá de qualquer cinismo, do jogar recuado e em transição, do dar a iniciativa ao adversário para o surpreender em contra-ataque – ainda que o envelhecimento desta equipa do Real Madrid não lhe permita entrar em cavalgadas e em Gegenpressings e por isso mesmo recomende um jogo mais pausado e controlado, feito sobretudo a partir do seu meio-campo. Vai bem para lá das defesas magistrais feitas por Courtois, a negar sucessivamente o golo a Mané e a Salah, como vai para lá dos milagres que Benzema foi fazendo nas eliminatórias contra os poderosos Paris Saint-Germain, Chelsea e Manchester City. Mas não há nada de místico nas vitórias sucessivas do Real Madrid nesta competição.
O que há em Madrid é uma equipa que domina as formas de ganhar a Liga dos Campeões e que por isso mesmo levantou a taça mesmo tendo perdido quatro dos 13 jogos que fez na prova – com o Sheriff, o PSG, o Chelsea e o Manchester City. Quatro foi o total de derrotas do Liverpool FC nos 63 jogos que fez em todas as competições esta época – como West Ham e o Leicester City na Premier League, o Inter Milão e o Real Madrid na Liga dos Campeões. E, no entanto, nas três finais que jogou – ganhando duas nos penaltis – a equipa de Klopp não fez um só golo em 60 remates. São maus, os atacantes dos reds? Mané, Salah, Díaz, Jota, Firmino e até Origi não prestam? Não é por aí. Nem a coisa se resolveria certamente se o treinador alemão lhes tivesse dito durante a época “Eu levo-te à final e tu depois ganhas-ma”. Era bom que tudo fosse assim tão simples.
PS - O Último Passe, a minha crónica matinal, vai estar suspenso entre 1 de Junho e 17 de Julho, tal como o Futebol de Verdade, que faço diariamente no meu canal de YouTube, às 12h30. Nesse período, o meu Substack continuará a ter artigos, à cadência de um ou dois por dia, mas apenas para subscritores Premium. Vou continuar a publicar a série F80, com uma cromobiografia diária, e juntar-lhe-ei a série Reis da Europa, contando a aventura dos diversos campeões nacionais na época que está a terminar. Pode tornar-se subscritor Premium e passar a receber estes artigos neste link.
Boa tarde António.
Votos de umas boas férias.
Aquele abraço.
Bom dia, só mesmo para lhe desejar umas boas férias, um grande abraço