Futebol, Tarzan e o MMA
A tecnologia transportou Nova Iorque para a selva profunda, habitada por milhões de Tarzans. O resultado, identificado por Carvalhal, é a transformação do futebol numa variante de MMA.
Carlos Carvalhal não fez muito mais do que constatar o óbvio quando veio dizer que, se o clima continua como até aqui, não tarda e os treinadores andam “todos à porrada”. Se o tema não fosse tão grave, quase daria para brincar e sugerir que a Liga portuguesa podia encontrar aqui um nicho ainda em aberto no mercado internacional, um misto de futebol com MMA, e dessa forma alavancar receitas televisivas. Como, infelizmente, o assunto não é apenas grave mas também urgente, convém perceber o que é que transformou o futebol dos tempos que Carvalhal identificou, de Vítor Oliveira, Manuel José ou Quinito, nesta coisa quezilenta a que assistimos hoje. E o que é curioso é que foi uma coisa boa, útil e indispensável à modernidade: a tecnologia.
Até ao momento em que todos os lances passaram a ser escrutinados por dezenas de câmaras, o hooligan que há em cada um de nós vociferava – e felizmente na maior parte de nós era contido pelo cidadão respeitador que também todos temos cá dentro – mas não encontrava suporte tecnológico para a sua indignação e o tema não passava da conversa de café entre amigos. Quando passamos a ter os lances de todos os ângulos e perspetivas, demos força ao hooligan. E atenção: não defendo a abolição do escrutínio. Pelo contrário, sempre me bati por ele e acho que ele é fundamental no futebol moderno, porque não é aceitável que eu em casa tenha mais meios para avaliar os lances do que as equipas de arbitragem e porque, apesar das discordâncias dos especialistas em lances de “zona cinzenta”, mais uma vez à vista na quantidade de penaltis a que o FC Porto teria direito em Moreira de Cónegos, é indiscutível que o VAR veio dar um contributo importante na luta pela verdade desportiva. O que digo é que nos faltou – a todos – a preparação. Não só futebolística como sobretudo cívica.
O tema trouxe-me à memória a história de “Tarzan em Nova Iorque”, o filme no qual o herói da selva chega a Manhattan para resgatar o filho, raptado pelo dono de um circo, e fica de tal forma baralhado com a civilização que tudo lhe faz confusão. Ora neste caso o efeito foi ainda mais devastador, porque não trouxemos Tarzan a Nova Iorque – levámos Nova Iorque à selva profunda, povoada por milhões de Tarzans sem os prepararmos primeiro para aquilo que iam encontrar. E em vez de carros, roupas ou outras coisas quotidianas a que aquele Tarzan não estava habituado, estes Tarzans têm de se debater com foras-de-jogo e penaltis, que sempre discutiram de forma abstrata. O que isto gerou no futebol nacional foi gente cada vez mais convencida da sua razão, a validação televisiva de “roubos” em debates cada vez mais insanos que são consumidos à exaustão pelos adeptos – e esses, felizmente, ainda se limitam a ficar em casa, lobotomizados no sofá, a ver os outros discutir por eles – e servem de ponto de partida para aquilo a que ainda ontem Pinto da Costa chamou “o direito à indignação”, evocando a memória de Mário Soares.
A relação entre o futebol e a tecnologia foi conhecendo diversas etapas. Primeiro, os árbitros erravam, os adeptos e os treinadores suspeitavam, mas não tinham meios de suporte para a sua argumentação e a coisa ficava por ali. Era a fase Calabote ou, mais tarde, o tempo em que José Maria Pedroto falava dos “roubos de igreja”. Depois, já com jogos na TV, mas com poucas repetições e imagens meio trémulas, os árbitros continuavam a errar, os adeptos e os treinadores a suspeitar, sendo que mesmo sem que os meios de prova fossem conclusivos a coisa começava a ganhar destaque mediático. Foi a fase da “fruta” e do “café com leite”. Mais à frente, ainda sem VAR mas já com imagens mais nítidas e maior investimento nas transmissões e em programas televisivos de debate arbitral, os árbitros continuaram a errar, os adeptos e os treinadores a suspeitar, e a pegada deste debate no espaço público aumentou de forma exponencial. Foi a fase das “missas” e dos “padres”. Atualmente, já com VAR e com a nitidez das imagens a aumentar ainda mais, os árbitros ainda erram, os adeptos e os treinadores ainda suspeitam, e o tema é absolutamente impositivo em qualquer conversa sobre futebol.
A cada edição que faço do Futebol de Verdade, começo por falar de futebol, daquilo que é o jogo de verdade, de táticas, de estratégias, de gestos técnicos, mas a pressão dos comentários é sempre para que vá parar aos temas de arbitragem. E eu, culpado me confesso, passei a fazer ali a minha avaliação aos lances mais polémicos. Tal como Tarzan, cedi aos cânones da civilização. E fi-lo, não porque isso me aumente a receita – o Futebol de Verdade rende zero euros neste momento – mas porque era entre isso e estar constantemente a ler que estava vendido para silenciar os “roubos” que são praticados nos campos ou que era cobarde e por isso fugia ao tema.
A tecnologia serve de apoio aos árbitros e veio para ficar, porque muito pior do que errarem de vez em quando e serem quase sempre corrigidos, como acontece agora, era quando erravam frequentemente, sem qualquer possibilidade de correção, como há 20, 30, 50 ou 70 anos. Saltámos, no entanto, um passo fundamental na aplicação dos meios tecnológicos: a formação do consumidor. É que jogadores, dirigentes, diretores de propaganda, treinadores, programadores, jornalistas, adeptos, em suma, todos os que gostam e gravitam à volta do futebol, devem entender três coisas fundamentais. A primeira é que na arbitragem há uma zona cinzenta, que não há vídeo que transforme uma jogada numa verdade absoluta, e está à vista na intervenção posterior dos especialistas, que raramente estão de acordo uns com os outros. A segunda é que na defesa dos interesses particulares estão a matar a galinha dos ovos de ouro, que a única coisa que conseguem ao inflamar os seus próprios exércitos – umas vezes com razão de queixa e outras sem… – é afastar ainda mais do futebol aqueles que já são capazes de viver sem ele. A terceira é que o respeito pelo outro tem de se sobrepor sempre à vontade primal de o estrafegar, que o cidadão respeitador que todos temos deve mandar no hooligan que também cá está. As duas primeiras, cabe aos agentes do futebol explicá-las. A terceira, lamento dizer-vos, não tem a ver com o futebol. É uma questão de educação.