Futebol, dinheiro e direitos humanos
A autorização de venda do Newcastle United a um fundo do reino da Arábia Saudita virou para o futebol muitos olhares acusadores. Mas o futebol aqui é mais vítima.
A aprovação por parte da Premier League da venda do Newcastle United ao fundo soberano do reino da Arábia Saudita, presidido pelo príncipe herdeiro, Mohammad bin Salman, foi uma forte machadada nos que sustentam que em Inglaterra as coisas são muito diferentes e que até vinham apresentando os ingleses como principal força de bloqueio para a SuperLiga. Não são – e já lá estavam outros donos igualmente pouco suscetíveis de serem convidados para uma festa de família em sua casa para o comprovar. No fundo, isto é quase tudo acerca do dinheiro. E quando não é sobre o dinheiro é acerca das condições para se chegar ao dinheiro. O futebol aqui é um pretexto.
O negócio da venda do Newcastle United já dura há ano e meio, que foi quando Amanda Staveley, do fundo PCP Capital Partners, diz ter-se apaixonado pela atmosfera em St. James’ Park, durante um jogo com o Liverpool FC – que ela e o marido já tinham tentado comprar. Staveley decidiu então que queria comprar o Newcastle United, cujos adeptos ainda por cima estavam doidos para se verem livres do dono, Mike Ashley, por ser um unhas de fome que não tirava a equipa do fundo da tabela. A questão é que a empresária e o marido, o iraniano-britânico Mehrdad Ghodoussi, não tinham o dinheiro suficiente. Foram então falar com os amigos do PIF. Ora o PIF, acrónimo para Public Investment Fund, é presidido por Mohammad bin Salman, príncipe herdeiro e na prática governante do reino da Arábia Saudita, em vez do pai, Salman bin Abdulaziz, que já tem 85 anos e se supõe esteja pronto para abdicar. E o reino da Arábia Saudita tem sido alvo de frequentes e importantes críticas vindas de instâncias tão diversas como a Amnistia Internacional ou o parlamento britânico, por coisas que são, como hei-de dizer-vos?, graves. Muito graves até.
Há a questão da perseguição aos homossexuais, há a questão do desrespeito pelos direitos das mulheres, há a questão da suspeita de assassinato de jornalistas, há a questão da prisão de quem denuncia todas as outras questões... Foi por isso que, quando começou a falar-se do negócio da compra do Newcastle United, em Março de 2020, imediatamente se disse que os candidatos a donos não passariam na comissão de avaliação da Premier League. E não passaram, ainda que tudo indique que durante todo este tempo não se submeteram a tal coisa. Aparentemente, o que se passou é que era preciso remover mais umas quantas pedras do caminho. Coisas que não serão tão graves, mas que aparentemente farão mais confusão a quem manda no futebol. São coisas graves também, não me percebam mal. É que, dentro da política de rivalidade com tudo o que vem do Qatar, o reino da Arábia Saudita não só proibiu a BeIn Sports de operar na região como financiou e apoiou o BeoutQ, rede de canais piratas que emite os jogos da Premier League para todo o Médio Oriente. E, como devem calcular, isso é que não podia ser. Lá que executem homossexuais ou proíbam mulheres de sair sozinhas é uma coisa – afinal, agora até já podem conduzir... – agora que mexam com as questões dos direitos televisivos do futebol é que não.
A questão ter-se-á resolvido em Julho, quando Nasser al-Khelaifi, o patrão da BeIn Sports e presidente do Paris Saint-Germain, se encontrou em Doha com Majeed al-Qasaabi, ministro da comunicação no reino da Arábia Saudita e, como não?, também membro do conselho de administração do PIF. Os sauditas prometeram extinguir a BeoutQ e autorizar a BeIn Sports dentro do seu território e, como que por milagre, o negócio do Newcastle United avançou. Pelo caminho, os media ingleses reportam que bin Salman terá dito a Boris Johnson, primeiro ministro britânico, que se o negócio não fosse autorizado podia dizer adeus às relações comerciais entre os dois países, o que também vem tirar um pouco de cima do futebol esse papel odioso de colocar sempre o dinheiro acima dos princípios. Mas haverá alguém acima de um determinado nível de responsabilidade que possa dizer que o não faz? Então se o Reino Unido vende caças e armamento diverso à Arábia Saudita por que é que não há-de poder vender clubes de futebol? Se o PIF é dono de porções consideráveis do capital da Boeing, do Citigroup ou até do Facebook, por que é que não há-de poder ser dono do Newcastle United? Se entre os donos de clubes da Premier League estão um oligarca russo, um membro da família real dos Emiratos Árabes Unidos ou um rei da pornografia, por que não um fundo soberano da Arábia Saudita?
O que está aqui em causa, por muito que seja isso que ofusca e encandeia os olhos de quem observa, não é o dinheiro. Tal como o que estava errado na tentativa de secessão para formar a SuperLiga não era o dinheiro. O dinheiro está presente em todas as partes das nossas vidas e há que aceitar que uns têm mais e outros têm menos. Os adeptos do Newcastle United, que têm passado a semana a festejar o facto de se terem visto livres de Mike Ashley – cujo maior pecado será mesmo o da falta de respeito pelos empregados da Sports Direct, como sucede em quase todas as grandes empresas de retalho – não se importam com a entrada do dinheiro e nem querem saber se ele é limpo ou sujo de sangue. O que está aqui em causa, por isso, é a falta de vergonha e já não vem de hoje. É a desfaçatez com que a Premier League vem agora dizer que tem provas jurídicas de que o PIF não tem nada a ver com o reino da Arábia Saudita – mas que não as mostra. É a forma como o futebol é feito prisioneiro de interesses mais altos e não tem a força (nem a vontade) para se manter à parte. É a normalização de aberrações como essa coisa de não nos importarmos tanto com a defesa dos mais básicos direitos humanos de minorias como nos importamos com os direitos televisivos das competições que queremos ver.
E aí, repito o que já escrevi várias vezes, o problema não é do futebol. É nosso, da sociedade.