F80 (6): Figo
É um dos três portugueses com uma Bola de Ouro. Quando se vê que os outros foram Eusébio e Ronaldo já se percebe até onde chegou Figo, o maior porta-estandarte da geração de ouro do futebol nacional.
Bobby Robson disse-o uma vez: “Figo tem um talento enorme, mas tem de ser mais forte. Cai muito e assim não nos serve de muito”. O contexto era o da eclosão de um jogador de 19 anos e fino recorte técnico, que conduzia a bola sempre colada ao pé no lado direito da jovem equipa que o técnico inglês montava no Sporting. Figo era, até, um rapaz entroncado, tinha cabedal e estatura para se aguentar, mas o seu jogo era demasiado interrompido por toques que ele raramente conseguia evitar, travando-lhe a fluidez ofensiva. Essa época, de 1992/93, marca o crescimento daquela que já era uma das maiores promessas do futebol português, ainda assim atrás de Vítor Baía, Peixe ou Rui Costa. Figo transformou-se de pérola tecnicista com corte de cabelo imperial num animal de competição que marcou mais de uma década no futebol português, espanhol e europeu.
Vencedor de quatro ligas espanholas, outras tantas edições da Série A italiana, uma Liga dos Campeões, uma Taça das Taças, uma Taça Intercontinental, duas Supertaças Europeias e um Mundial de sub20, a Figo só faltou mesmo ser campeão português, nos quatro anos em que foi titular indiscutível do Sporting. E foi assim porque ao talento que acrescentava dentro do campo se somava ainda uma personalidade fortíssima, de enfrentar os conflitos da mesma forma que passou a enfrentar os adversários. Figo saiu de Alvalade pela porta lateral, no meio de uma polémica originada pelo facto de o clube querer transferi-lo para a Juventus e ele ter escolhido o Parma, que na altura partilhava patrocinador com o Benfica – a Parmalat. Como no passado, ainda na formação, quando o Sporting deixara atrasar os salários, ele já estivera à beira de trocar Alvalade pela Luz, os adeptos leoninos temeram que fosse a mão longa do Benfica a motivar a preferência e chegaram a invadir a sala de imprensa para o apertar. O clima ficou difícil, mas a solução acabou por vir da Catalunha. Como o jogador assinara pelos dois clubes, ficava impedido de jogar na Série A. “De castigo”, acabou no FC Barcelona, onde Cruijff começava a formar aquele que ficou conhecido como “Dream Team”. E aí começou a lenda.
De Figo, podem destacar-se a capacidade competitiva, a liderança, reconhecida em qualquer balneário por onde tenha passado, ou até a mente à prova de bala, que lhe permitia jogar da mesma forma num pelado da Cova da Piedade ou num Camp Nou repleto de gente a insultá-lo. Como assim, a insultá-lo? Mas então ele não era estrela do FC Barcelona. Era. Até que se deixou seduzir pelo projeto dos Galácticos, montado no Real Madrid por Florentino Pérez. No Verão de 2000, Figo trocou a Catalunha pela capital, a camisola azu-grená do Barça pelo alvo do Real Madrid. Na primeira vez que voltou a Camp Nou, o ambiente estava efervescente e até uma cabeça de porco lhe mandaram das bancadas. Ele nem reagiu. Da mesma forma que, no primeiro jogo depois da invasão da sala de imprensa de Alvalade, em Fevereiro de 1995, foi o melhor em campo contra o Belenenses no Restelo e, entre apupos das duas claques, deu o golo da vitória (1-0) a Vujacic. Mostrou na jogada mais do que fazia dele um craque único: o drible extraordinário e a visão de jogo esclarecida, que lhe permitia escolher quase sempre a melhor solução para cada lance. E, a partir do momento em que a trabalhou, uma enorme resistência, graças à qual passou a ser capaz de fugir à maioria das faltas e seguir imparável em direção ao objetivo.
Dizia Marinho Peres, o treinador que, depois de Raúl Águas o ter lançado, com 18 anos, deu por fim a Figo o estatuto de titular no Sporting, que o jogador tinha “a técnica de um brasileiro e a potência de um alemão”. Nada mau, para quem um dia só não foi treinar à experiência no Benfica, o clube da família, por ser então pequeno e frágil e haver a ideia de na Luz só se aproveitarem matulões. Os pais de Figo eram funcionários de um supermercado e de uma fábrica de confeções. Com o nascimento de Luís, a família mudou-se de Algés para a Cova da Piedade, onde abriu um mini-mercado com bar anexo. Na margem sul do Tejo cresceu assim um miúdo franzino, de longo cabelo louro e muito jeito para o futebol. Podia mostrar alguma dificuldade em chutar com força ou aguentar cargas, mas a técnica, o espírito competitivo e a responsabilidade permitiram ao menino que aos oito anos já tinha chave de casa destacar-se. Aos 10 anos, nos Jogos Desportivos de Almada, foi o melhor goleador da equipa das Barrocas, campeã de futebol do seu escalão. Daí a preencher a primeira ficha de jogador federado, em 1984, foi um ápice. Foi inscrito pelo clube de bairro Os Pastilhas, que passou a ser a sua alcunha para os que com ele jogaram desde cedo em Alvalade e nas seleções jovens de Portugal.
Os Pastilhas não tinham campo, pouco treinavam e, no distrital de Setúbal, perdiam sempre por resultados largos, mas só a extinção da equipa levou Figo a cruzar o rio. Conduziram-no um dia aos treinos de captação do Sporting e, apesar de idolatrar o benfiquista Chalana, fez por agradar. Pediram-lhe para voltar e ele foi ficando, sem lhe comunicarem uma decisão. Até que, semanas depois, ele próprio se chegou à frente e perguntou se interessava ou não. Disseram-lhe que sim, inscreveram-no e passaram a pagar-lhe as deslocações aos treinos. A 3 de Novembro de 1985, um dia antes de completar 13 anos, fez o primeiro jogo de verde-e-branco, na equipa de iniciados que ganhou por 9-0 ao Palmense. E até marcou um golo. Uma semana depois, estava na seleção de Lisboa que bateu a de Coimbra pelo mesmo resultado. A ascensão foi veloz.
Em Alvalade, Figo mostrou-se nas sucessivas categorias, ganhando espaço nas seleções jovens que, com Carlos Queiroz, começavam a ser viveiro de craques. No momento de se sagrar campeão europeu de juvenis, em 1989, viveu a crise contratual mencionada acima. Em dificuldades, no seguimento da passagem de Jorge Gonçalves pela presidência, o Sporting ia falhando sucessivamente no cumprimento das suas obrigações, pelo que Figo assinou pelo Benfica. Num último esforço, a direção de Sousa Cintra segurou-o, mas não conseguiu impedir o Benfica de registar também o seu contrato. O facto de ter assinado por dois clubes valeu-lhe 45 dias de suspensão federativa – nada de especial, uma vez que nesse período Figo continuou a trabalhar com a seleção de juniores que venceria o Mundial de sub20 em 1991, na final com o Brasil.
Antes, em 1989/90, começou a ser chamado regularmente aos treinos da equipa principal do Sporting. Estreou-se a 1 de Abril de 1990, lançado por Raúl Águas em vez de Cadete nos três minutos finais de uma vitória por 1-0 em Alvalade frente ao Marítimo. Apesar de não ter jogado em 1990/91, já arrancou como titular do Sporting no campeonato após a conquista do Mundial de sub20. Carlos Queiroz passou e então a selecionador principal e, a 12 de Outubro de 1991, deu-lhe a primeira das 127 internacionalizações pela equipa AA (com 32 golos marcados), que lhe permitiram, à data, ser o jogador que mais vezes tinha vestido a camisola nacional. Aconteceu num empate com o Luxemburgo, jogo de má memória pelo resultado e por ter antecedido uma derrota com a Holanda, que carimbou a ausência de Portugal do Europeu de 1992. Nada a que os portugueses não estivessem habituados, mas uma realidade que a geração de ouro, a que ganhou os Mundiais de sub20 em 1989 e 1991, se encarregou de mudar. Figo acabou por marcar presença em cinco fases finais, atingindo o jogo decisivo do Euro’2004 (perdido frente à Grécia) e as meias-finais do Euro’2000 e do Mundial’2006. No Euro’1996 os portugueses caíram nos quartos-de-final e só o Mundial’2002 deve ser encarado como fracasso. À eliminação na primeira fase não terá sido alheio o facto de Figo ter jogado a competição com uma lesão mal curada num pé.
O Sporting foi o único clube que Figo representou sem ter sido campeão. Totalista no quarto lugar de 1991/92, com Marinho Peres, conheceu também nessa época a estreia nas provas da UEFA, alinhando nas duas partidas que valeram a eliminação à primeira pelos romenos do Dínamo Bucareste. Na segunda época como titular, com Bobby Robson, falhou dois jogos – e o Sporting acabou em terceiro lugar. Robson ainda iniciou a terceira temporada, 1993/94, sendo despedido pelo presidente Sousa Cintra quando seguia na frente da tabela, após uma derrota na Áustria com o Casino Salzburgo. Veio Carlos Queiroz, o clube apostou muito nos jogadores que o professor tão bem conhecia das seleções jovens e quase ganhava a Liga. Foi a derrota caseira com o Benfica, por 3-6 (Figo abriu o marcador para os leões nessa tarde de chuva de Maio), que levou à vitória final dos benfiquistas. Como se isso não bastasse, Figo esteve ainda na final e na finalíssima da Taça de Portugal, perdida para o FC Porto (1-2), a 10 de Junho. A época de 1994/95 foi a melhor de Figo pelo Sporting. O clube acabou a Liga em segundo lugar e ganhou a final da Taça de Portugal, batendo na final o Marítimo, por 2-0. Este, a 10 de Junho de 1995, foi o último jogo de Figo pelos leões.
Já desde o inverno anterior se percebera que o Sporting não podia segurar Figo. O jogador assinou um contrato com a Juventus mas, dadas as boas relações com os leões desde o negócio de Paulo Sousa, um ano antes, o clube italiano quis incluir o Sporting nas conversas. Foi então que José Veiga, recém-empossado como empresário de Figo, trouxe para a mesa a proposta do Parma. Julgando que aquilo que assinara com a Juventus não valia, Figo rubricou novo contrato com o clube da Parmalat. Temendo que o jogador fosse parar ao Benfica, os adeptos do Sporting tornaram-se agressivos. A 1 de Fevereiro de 1995, após uma conferência de imprensa, invadiram a sala de imprensa de Alvalade, ameaçando o jogador até com os paus de bandeira lá existentes. Figo jogou a partida seguinte, com o Belenenses, no Restelo, assobiado do primeiro ao último minuto, respondendo da única forma que sabia: foi o melhor em campo.
Banido pela Federação Italiana por dois anos, no seguimento da questão do duplo contrato, a Figo restava Espanha. Veiga foi a Madrid, onde do Real lhe disseram que sim, mas que o dinheiro da transferência teria de passar pelo Uruguai. Seguiu para Barcelona, onde tudo foi diferente. Marinho Peres dera as melhores referências de Figo a Johann Cruijff, seu antigo colega de equipa no clube catalão, onde era agora treinador plenipotenciário. E logo dali veio uma proposta que foi do agrado do Sporting e do jogador. O Sporting recebeu pouco mais de dois milhões de euros em direitos de formação e Figo foi apresentado sem destaque, pois os jornais de Barcelona andavam muito mais entretidos com o conflito entre Cruijff e Stoichkov, a vedeta da equipa. O Barça não ganhou nada no primeiro ano de Figo e Cruijff foi demitido, mas o português não ficou a perder com a mudança. Ali conheceu, na Primavera de 1996, a futura mulher, a sueca Helen Svedin, que lá trabalhava para a agência Elite. Casaram-se em Junho de 2001, no Algarve, entre apertadas medidas de segurança.
Foi igualmente em Barcelona que Figo começou a impor-se como um dos mais sólidos e criativos futebolistas da Europa. Com Guardiola e Ronaldo, mas também com os portugueses Baía e Couto, passou a formar o que ficou para a história como o “Dream Team” do Barça. Em 1996/97 ganharam a Taça do Rei e a Taça dos Vencedores das Taças. A partir de 1997, já com van Gaal em vez de Robson aos comandos, vieram dois títulos nacionais, mais uma Taça do Rei e uma Supertaça Europeia. Figo chegou a ser capitão de equipa e parecia entender-se às mil maravilhas com os dirigentes. Ainda no Verão de 1997, o extremo esteve quase a assumir um compromisso com o Milan. Ganhando menos do que a generalidade dos colegas, deixara-se seduzir pelas propostas de Fabio Capello, que ia regressar a Milão depois de ter sido campeão espanhol pelo Real Madrid. A sua cláusula de rescisão era relativamente baixa – pouco mais de seis milhões de euros – e os italianos pagavam-lhe muito mais em salário. Ficou para a história a resposta de Figo a um jornalista que lhe perguntou se não se sentia devidamente valorizado em Barcelona: “Podíamos ficar aqui a tarde inteira a falar disso”. A continuidade só ficou decidida quando o FC Barcelona igualou a oferta transalpina. Restava um problema: é que Figo assinara um contrato-promessa com o Milan. Mas surgiu logo um documento com as assinaturas dele e do presidente Josep Lluis Nuñez, estipulando que, afinal, a cláusula de rescisão era de cerca de 20 milhões. O Milan recuou e Figo pôde renovar com os catalães até 2002, aumentando de novo a cláusula de rescisão, agora para uns então mais inatingíveis 33 milhões de euros.
Este não foi, ainda assim, o último contrato de Figo com o Barça. Em Fevereiro de 1999 voltou a renovar, vendo melhoradas as condições e aumentada a cláusula liberatória – que subia aos 65 milhões de euros. “Ficarei neste clube até me mandarem embora”, disse. Mas não foi assim que aconteceu. Findo o Europeu de 2000, onde foi uma das principais figuras e carregou Portugal até às meias-finais, Figo viu-se envolvido nas eleições do Real Madrid. Florentino Pérez fez do anúncio de um acordo com ele – nunca confirmado pelo jogador – a principal arma para combater a recandidatura de Lorenzo Sanz. Ganhou e, a 24 de Julho, viu-se que era mesmo verdade: Veiga depositou na Liga espanhola os 10.270 milhões de pesetas que, ao mesmo tempo que libertavam o jogador do seu contrato com o FC Barcelona, faziam dele o mais caro futebolista da história. Figo inaugurou uma nova política no Santiago Bernabéu, a era dos “Galácticos”, que enquanto não caiu no exagero viria a dar ao Real Madrid dois campeonatos espanhóis, uma Liga dos Campeões, uma Supertaça Europeia e uma Taça Intercontinental. Em 2000, Figo recebeu a Bola de Ouro e só perdeu o prémio de melhor do Mundo da FIFA para Zidane. Em 2001 vingou-se e foi mesmo o primeiro português eleito como Jogador Mundial do Ano.
Foi a altura de se ver um Figo de mente forte, à prova de pressões. Na primeira vez que voltou a Camp Nou, ouviu insultos e cânticos a chamar-lhe “pesetero”, viu notas de dólar com a cara impressa e atiraram-lhe garrafas de whisky e até uma cabeça de porco. A TV3 da Catalunha fez até a contagem de decibéis: a cada vez que Figo tocava na bola, os mais de 100 mil espectadores que naquela noite enchiam o estádio superavam o efeito sonoro da descolagem de um avião. Mesmo assim, Figo foi mantendo a regularidade e só em 2001/02, devido à grave lesão que lhe afetou o Mundial, baixou dos 30 jogos por época. Tornou-se também uma figura incontornável na seleção, onde o entendimento perfeito com Luiz Felipe Scolari fez dele o líder em campo da geração que ingloriamente perdeu a final do Europeu de 2004. Prestes a fazer 32 anos, achou ser altura de se despedir da seleção e de se dedicar mais ao Real Madrid, que na última época, com Carlos Queiroz, nada ganhara.
Foi, porém, o primeiro sacrificado do novo treinador, o brasileiro Vanderlei Luxemburgo. Um ano depois, seis milhões de euros bastaram ao Inter Milão para o contratar. E, logo na época de estreia, com Figo de regresso à seleção – voltou a despedir-se no desafio pelo terceiro lugar do Mundial de 2006 –, o Inter ganhou a Taça de Itália. Ficou em terceiro lugar na Série A, mas o escândalo Calciopoli elevou-o a campeão na secretaria. De novo campeão de Itália em 2007 e 2008, Figo soube fintar os que o davam como acabado. Em Dezembro de 2006, alegando que precisava de um futebol menos exigente, assinara pelo Al-Ittihad, da Arábia Saudita. O contrato devia valer a partir de Julho de 2007 mas, convencido pelo presidente Massimo Moratti, que lhe ofereceu a renovação, denunciou o incumprimento dos sauditas e acabou por ficar em Milão. Em 2007/08, o relacionamento difícil com o treinador Roberto Mancini parecia prenunciar-lhe o fim da carreira – fez apenas 17 jogos na Liga – mas a chegada de José Mourinho levou o clube a pedir-lhe o prolongamento por ainda mais uma época. Ficou assim adiada a sua passagem ao Mundo empresarial, a sua dedicação plena à fundação a que dá nome desde 2003 ou a ação como dirigente desportivo.
Este artigo faz parte da série F80, destinada a celebrar o centenário das competições de futebol em Portugal, em 2022. Por aqui passarão biografias de jogadores, sempre em dia de aniversário, e a história de todas as épocas desde esse primeiro Campeonato de Portugal. Os primeiros nove artigos estarão disponíveis no plano gratuito. A partir de 7 de Novembro, para a eles aceder terá de se tornar assinante-pagante.